Idade das trevas
A Era da Inocência deveria ser o nome do próximo filme escrito e dirigido por Denys Arcand, se ele não tivesse encerrado a trilogia …
A Era da Inocência deveria ser o nome do próximo filme escrito e dirigido por Denys Arcand, se ele não tivesse encerrado a trilogia com A Idade das Trevas (título original, em francês). Porque inocência é pelo que clama o roteiro do terceiro filme. Porque inocência é o que mais nos faz falta. Uma natureza morta precisa de muita inocência para ser construída e apreciada. As crianças pequenas ainda brincam e vêem um sentido inocente em uma comunicação não-tecnológica. O que não acontece com candidatos a pré-adolescentes, vitimados pelo Ipod, MP3, games, etc. Arcand entende a era tecnológica como a idade da ignorância afetiva.
Fu Lana sempre teve o Canadá em alta conta. Os direitos sociais naquele país são os mais avançados do planeta. São a meta para qualquer organização. Mas ter de dividir a despesa por um poste derrubado em um acidente, quando você já perdeu as duas pernas? Afinal, a vítima é uma das partes do acidente e, portanto, pela lei, as partes são responsáveis pelos danos materiais causados à sociedade. Não é um caso extremo e irônico do que teríamos direito, enquanto cidadãos? Destas situações, absolutamente inusitadas, é feito o filme de Denys Arcand, que, de inocente, sobra apenas o final.
A busca pela solução da equação homem, na atual idade das trevas, é a procura pelo Graal da sobrevivência, por uma verdade que não é mais única, pós-estruturalista, em pleno reinado da mecânica quântica.
Hoje, há os que acreditam até em cavaleiros andantes, que optam por uma ilusão de princípos. São Quixotes com elmos de ouro, quando, na verdade, utilizam bacias de barbeiro na cabeça. Estamos todos procurando desesperadamente a fórmula da sobrevivência saudável.
Como sair ileso, em paz e destressado de um congestionamento de quilômetros? Com alguma chance, se houver um livro no carro, será mais fácil. O inferno é mesmo os outros, porém, nós somos os outros. O personagem escolhido por Denys se deixa humilhar e não se impõe frente a nenhum fato, nem aos filhos ou à esposa. A falta de respeito começa pelo sentimento dele por ele mesmo. E para sair dessa? Comicamente é sempre mais agradável.
Assim, vamos identificando a sua massacrada vida diária, acompanhando aquele personagem e todas as suas tentativas de burlar as frustrações. Primeiro, com subterfúgios na fantasia, depois arriscando a fantasia na vida real. Logo, percebe que só a ação resolve. Para se afastar dos problemas tradicionais, propõe uma mudança radical. Um recolhimento para o reconhecimento de si mesmo. É preciso, nesse caso, renascer depois das trevas. Para permanecer vivo e com as pilhas recarregadas.
Difícil é acreditar na trajetória do personagem Jean-Marc. Eram tantos os sonhos de sua juventude. Ele acreditava, por exemplo, que poderia mudar o mundo. Como todos aqueles que tenham se identificado com os dois filmes anteriores da trilogia. Cada um renegou ou repensou os valores durante a vida, porém, algo certamente ficou: a idéia de que há 40 anos, o mundo era menos egoísta.
A saída pode estar no isolamento, na volta ao campo, às práticas inocentes. Na seqüência das três etapas históricas sugeridas por Arcand - queda do império, invasões bárbaras e idade das trevas - a próxima, lógica, seria o Renascimento. No tempo dos hippies hipergenerosos, essa solução extemporânea não funcionou. ava pelo "paz e amor" do pós-guerra e pela total confiança no ser humano, mas o resultado foi uma grande frustração coletiva de um sonho que pode ter acabado. Esse assunto já foi abordado na trilogia. E os ses são os melhores defensores da vida naif.
Curtir a melancolia de viver sozinho, ando uma peneira de sanidade mental nas relações pode ser legal, mas não por muito tempo. Denys é um contemporâneo ligado, buscando entender a ironia de se viver na idade das trevas, em plena era do conhecimento instantâneo.