Greve no Pólo Norte

Ho, ho, ho, ri de nós aquele velho de barba branca, roupa vermelha, um pouco gorducho, que, diziam os mais antigos, descia pela chaminé …

Ho, ho, ho, ri de nós aquele velho de barba branca, roupa vermelha, um pouco gorducho, que, diziam os mais antigos, descia pela chaminé para deixar os presentes de Natal daqueles que haviam se comportado. Se tudo mudou nos últimos anos, contrariando as mais absolutas vontades, por que Papai Noel estaria fadado a continuar repetindo a velha rotina? Sair lá do Pólo Norte num trenó enferrujado, com renas preguiçosas e exaustas de fazer o mesmo trajeto (sabe-se lá se ganhavam hora extra), entrar em contato com climas adversos e carregar um saco pesado de presentes.


Definitivamente, Papai Noel proclamou sua liberdade. Avisou que não adianta se apegar aos apelos infantis, usar as crianças para escrever cartas, prometer que vai ser bonzinho só para ganhar presentes. Por favor, aquele gorro vermelho é chantagem da pior espécie. Não faça nada tão ridículo. É decisão pensada e repensada. Com o aval de seus companheiros de jornada. Papai Noel, o verdadeiro, aquele que habita a imaginação de todos nós, também demonstra sinais visíveis de cansaço. Marcas que lipo, botox ou a mais ultra tecnologia não conseguem eliminar.  


O Papai Noel que aprendemos a gostar na infância não sabe quantas casas visitou, quantas mesas fartas de comida enxergou, quantas árvores de natal entulhadas de presentes conheceu e quantas cartas foram enviadas para o Pólo Norte. Vocês estão rindo do quê? Nunca foram crianças? Eu respondia todas as cartas que minha filha Gabriela escrevia e para conferir mais autenticidade, colava até selo. Mais tarde, ela começou a desconfiar que o tio sempre sumia na hora da entrega dos presentes, com a desculpa de que iria guardar o carro. E Papai Noel usava o mesmo sapato que ele.


Acreditar em Papai Noel é um rito de agem. Uma lástima que um dia a magia do Natal se transforme em doce lembrança. Uma foto de um ado recente em que nos descobrimos felizes. Porque não se pode obrigar Papai Noel a continuar trabalhando, sob pena de descumprirmos cláusulas do Estatuto do Idoso. E, principalmente, porque não se pode fazer o tempo parar e eternizar tudo de pueril que a crença no Papai Noel nos traz. Novas regras. Só nos resta, aceitá-las.


Quando vi o Papai Noel chegar em Porto Alegre de ônibus, em dia de e livre, não sei, perdoem a sinceridade, mas alguma coisa que ainda sobrevivia na minha rotina natalina se quebrou. Depois, ao perceber, através de inexplicáveis contatos de terceiro grau que Papai Noel preparava uma "greve", perdi aquele jeito de brincar que sempre me habitava nessa época. Na chegada do Papai Noel substituto, na Usina do Gasômetro, logo que topei com o velhinho, achei ele com cara de madeira, sacaram? Cara de pau mesmo. Foi antipatia à primeira vista. Sou toda emoção. Não consigo mudar certas sensações.


Se eu sempre fui menina comportada, cumpri com meus deveres, fui boa filha, irmã exemplar, ótima companheira, mãe superdemais, amiga até o fim e profissional competente (onde foi que eu deixei a modéstia que me acompanhava? volta, urgentemente), devo apoiar também essa decisão irreversível do Papai Noel. Uma vez que ele está de greve, imediatamente senti meu espírito natalino se esvaindo. Nada me chama a atenção. Nem o colorido das lojas. Nem as vitrinas enfeitadas. Nem os e-mails de felicitações. Nada.


Serei parceira do Papai Noel. Entendo um pouco o desgosto dele com o estado das coisas. Pela primeira vez, em muitos anos de profissão, tive que fazer matérias de geral. Abandonar o requinte da economia. Conheci um menino que arriscava a vida banhando-se nas águas impróprias do Guaíba. Vi a melancolia no olhar da menina que perdeu a casa com o vendaval no Litoral Norte. Emocionei-me com as famílias desabrigadas e alojadas em um ginásio depois de uma chuva forte em Alvorada. Pisei em cenários nunca dantes navegados e, confesso, saí mais madura.


Como conseguir agora fazer renascer em mim o espírito natalino dos últimos anos? Que já estava um pouco desfalecido? Não tem jeito. Os papéis não seriam suficientes para as embalagens dos presentes das crianças pobres. Os pratos lindos não alimentariam a fome de tanta gente. As luzes que brilham e piscam não serviriam para iluminar de novo tantos olhares sem brilho que cruzaram meu caminho. Reei a missão de montar árvore, pendurar enfeites, badulaques e tudo o mais para a Gabriela (pensa que "tá podendo"). Papai Noel, com certeza, me compreende.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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