Fofoca literária

Adolfo Bioy Casares disse que Júlio Cortázar não escrevia, redigia. Quer dizer, bolava um argumento e aí, a frio, na base da técnica, o …

Adolfo Bioy Casares disse que Júlio Cortázar não escrevia, redigia. Quer dizer, bolava um argumento e aí, a frio, na base da técnica, o botava no papel. Há inúmeros testemunhos de que isso não a nem perto da verdade, mas, mesmo se não houvesse, a mera leitura de alguns contos ou trechos de romances bastaria para desmentir Casares. Agora, se Casares tinha razão, que técnica a do velho cronópio, se era capaz de criar tantas faíscas e labaredas malhando em ferro frio.


Moral da história: dá pra se resignar por crescer e viver à sombra do Borges, mas além disso ter de viver à sombra de outro grande conterrâneo é demais para um pobre marquês.


Coincidência
Todo mundo conhece a história: na mesma época, sem um saber do outro, Cortázar e Casares escreveram o mesmo conto, "La puerta condenada" e "El mago inmortal", respectivamente. Mesmo conto? Até por aí. Um sujeito, em viagem a Montevidéu, se hospeda num hotel e presencia coisas estranhas no quarto ao lado. Só. Em "La puerta condenada" tudo parece exato e palpável, dos móveis à atmosfera, sem falar que no fim a gente fica com uma sensação de terror indizível. Cortázar dá uma aula de suspense, de sugestão. O que sobra de "El mago inmortal"? Nada. Trata-se apenas de uma piada sem muita graça. Coincidência mesmo seria se o conto de Casares também fosse uma obra-prima.


Paulo Coelho magoou
Paulo Coelho, à jornalista Hannah Pool, no The Guardian: "Os escritores são postes. Os críticos são cachorros. Pergunte a um poste o que ele acha de um crítico. Um cachorro machuca um poste?"


Engraçado, mas falso. Ao escolher as imagens poste e cachorro, Coelho dá cartas marcadas: escritor superior a crítico. Por que isso? O poste, tadinho, se sentiu machucado pelas matilhas que o regam mundo afora?


Esse papo me lembra uma saída do Faulkner: "O artista está um furo acima do crítico, pois o artista está escrevendo algo que fará o crítico funcionar. O crítico está escrevendo algo que afetará todo mundo, menos o artista."


Tudo bem, o escritor faz o leitor funcionar, mas e daí? Quando leio Ítalo Svevo, funciono em alto nível: me sinto à mesa comendo ambrosia, o combustível dos deuses Quando leio Paulo Coelho, minhas engrenagens chiam, soltam fumaça, tossem. Me sinto à mesa comendo um prato-feito de boteco, se vamos levar em frente a imagem gastronômica. Por que eu deveria calar esse péssimo funcionamento? Por que o Coelho, apesar da minha reação, deve continuar se sentindo um poste impávido colosso?


Outra perguntinha: por que a crítica não afeta o artista? Nenhum artista pode ser cego e surdo assim aos argumentos de um crítico. Como nenhuma obra é perfeita, me parece saudável que o artista queira saber o que outros pensam e sentem a respeito para tentar melhorar na próxima vez. Se manter cego e surdo não é só uma questão de vaidade, então, mas de burrice extrema.


Claro que há o outro lado. Muitos críticos são tacanhos, ressentidos, mesquinhos, o diabo a quatro. Mesmo bons críticos erram feio. E então? Então existe uma coisa chamada discussão, em que se argumenta, se dá exemplos, tenta se provar o que se pensa. Pelo menos me parece a melhor saída aos que não nasceram com temperamento de cachorro ou de poste.

Revisão
Era uma vez, numa editora onde trabalhei, um revisor que pegou o livro de um poeta local muito conhecido e pouco lido. Topando com um verso que falava de "ressecas violetas", achou que só podia ser um erro e tascou "ressaca violenta". Adorei, mas, para evitar uma inimizade eterna, pedi que o revisor voltasse atrás. Total, aquela correção não salvaria nenhum de nós.


Hemingway X Fitzgerald
Fitzgerald disse que os ricos são diferentes de nós e Hemingway respondeu na bucha: sim, eles têm dinheiro. Outra tirada maravilhosa dele foi: "Meu segredo é não cair em público". Mas ele caiu em público. Como caiu. Quando se deu conta de que não estava à altura do que havia imaginado a vida toda, meteu o cano de uma espingarda de caçar elefantes na boca e disparou. A escolha do calibre talvez delate um último e injustificável senso de superioridade. Mas, como disse o Borges, esse gesto o salvou um pouco.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. ou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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