Fingir de cego, burro e conservador para ser aceito
Quando era adolescente eu não curtia futebol e me sentia um peixe fora d água em meio aos caras bravateiros que davam demonstração de …
Quando era adolescente eu não curtia futebol e me sentia um peixe fora d água em meio aos caras bravateiros que davam demonstração de força e esperteza o tempo todo. Não gostava de andar no meio da manada. Não por me julgar melhor, ao contrário, achava que havia algo errado comigo. Faltava-me malandragem e uma ponta de arrogância espontânea, embora os caras me tratassem bem. Num final de tarde me acerquei de uma roda e, pela primeira vez, vi um baseado. Os rapazes estavam fumando maconha e me ofereceram um "pega". Quis parecer esperto e agradeci, me saindo com uma desculpa prá lá de patética: - Não, obrigado, já fumei em casa antes de sair. Os caras se quedaram me olhando como se eu fosse um ET e depois se dobraram de rir. Óbvio que me dei conta que tinha dito algo descontextualizado, fora da real deles. Saí de fininho, me sentindo um babaca. Voltei para casa, para o meu quarto, o mundo paralelo onde me refugiava e lia vários livros ao mesmo tempo. Não era necessariamente um tipo solitário, apenas não conseguia entrar em sintonia com um ambiente social cuja cultura predominante era a de permanente demonstração de poder pela riqueza dos pais. Os meus, jornalistas, eram pobres como ratos de igreja, além do mais eu precisava esconder um terrível segredo de familía: eles eram brizolistas. Naquele tempo brizolista e comunista era tudo a mesma coisa; considere-se que corriam os anos de chumbo e não tardou o DOPS bater em casa e levar o meu tio preso. (Acusado de ter trabalhado na Legalidade, nos porões do Palácio Piratini).
Mas curiosamente eu não era de esquerda, nem de direita, nem de centro, nem de baixo, nem de cima. Gostava mesmo era de literatura, de arte, de música (comecei a tocar violão cedo), estudava, fazia o Atelier Livre da prefeitura, depois me meti com o pessoal de teatro no CAD (Centro de Artes Dramáticas da Ufrgs), comecei a fumar (cigarros) e a escrever. Saí do meio teatral por perceber que não conseguia saber quem eram aquelas pessoas, pois os atores todos os dias me apresentavam novos personagens (ator jovem sempre incorpora um novo personagem por achar que o personagem é melhor do que ele) e acabei enchendo o saco daquilo, era muito cansativo.
Então aconteceu o impensável. Minha namoradinha engravidou. Pronto, os anos de aventura se transformaram em anos de compromisso (para sempre). Comecei a trabalhar numa agência de propaganda e virei pai de família. Não tardou e comecei a transitar em outros ambientes. Contudo, me acompanhava uma sensação que eu não deveria dizer tudo o que pensava, pois as minhas palavras causavam estranhamento. O meio da publicidade era extremamente conservador (final dos anos 60) e logo percebi que deveria me conter para ser aceito. Então ei a me censurar (não por muito tempo). A maioria daqueles publicitários começou na década de 50, eram bem mais velhos do que eu, e, com raras exceções, quase todos eram adesistas da ditadura.
Em pouco tempo recebi uma recomendação expressa do meu chefe para cortar os meus cabelos (longos). "Parece um maconheiro e comunista" - me disse. "Mas eu não sou" - protestei. "Não basta" - respondeu. "Tem que não parecer". Então chutei o balde e pedi demissão.
Dizer tudo, ou quase tudo o que pensava ou a ser um grande filtro seletivo, experimentei. Funcionou para encontrar um novo emprego onde tinha liberdade para criar, e funcionou para eleger novos amigos. O lendário bar do IAB foi o reduto onde finalmente encontrei a minha tribo. Ser aceito como sou pelos amigos foi um divisor de águas na minha vida pessoal. E na vida profissional aceitei numa boa o bordão que corria nos bastidores: o cara é louco mas é muito competente. Mas custei a resolver um antigo ressentimento: o de ter ado muitos anos da minha vida fingindo ser cego, burro e conservador para ser aceito na reacionária e enrustida sociedade portoalegrense, a mesma que crucificou Elis Regina.