Fim da exceção
Ao final do filme, sentiu um impulso natural de aplaudir. Fu Lanestra (a barata baixo astral), de plantão, assoprou "não se atreva" na orelha …
Ao final do filme, sentiu um impulso natural de aplaudir. Fu Lanestra (a barata baixo astral), de plantão, assoprou "não se atreva" na orelha da paralisada Fu Lana que, obviamente, obedeceu. Ela não atendeu a seus próprios impulsos, mas não ou cinco segundos e a platéia amplificava irrefreável os aplausos livres e espontâneos, confirmando a existência de um consciente coletivo. A sensação de pertencer à parte solidária da humanidade fez Fu Lana sorrir aliviada e destilar inseticida espiritual contra sua infelizmente imortal e permanente companheira.
O filme (A vida dos outros) tratava do direito de existir, pensar e sentir em plena guerra fria, do lado de lá do muro. Quando as escutas faziam parte da estratégia de controle, quando perseguir a escrita era proteger um sistema de força e desesperança. Onde o sofrimento se revelava patético e a impossibilidade era traduzida em suicídios. Quando a expressão precisava ser contida para vencer o poder majoritário e o indivíduo era a ameaça.
Fu Lana refrescava seus dias de forno em salas com ar refrigerado (em cubos). Intercalou O Suspeito com A Vida dos Outros. E o resultado foi muito parecido. Só que um dos filmes registrava o que aconteceu há alguns anos e o outro o que está acontecendo hoje, agora, neste minuto. E por isso sentiu vontade de aplaudir a ambos. As ações que trazem à tona atos prejudiciais ao homem livre devem ser aplaudidas e, mesmo assim, elas se repetem. Nunca iremos decorar todas as formas de controle. A repressão é única em seu lugar e época e, ao mesmo tempo, é sempre a mesma. É mais ou menos como tratar do mal como instituição.
Quem não recebe alguma ligação freqüente de algum número suspeito ou desconhecido no celular? Fu Lana mesmo já desistiu de atender a uma mesma ligação com prefixo de outro Estado, pois já ouviu falar de chamadas que saem direto de presídios e são resultantes de números clonados ou coisa parecida. No entanto, em países onde a guerra está instituída e declarada, essa situação pode custar a vida de um usuário inocente. Ainda mais se ele tiver alguma relação com o país inimigo. Mesmo a mais remota conexão, como ter nascido ali por perto, ser descendente, naturalizado, ter amigos, familiares ou conhecidos e assim se tornar suspeito, tal um perigoso terrorista, sendo, antes de investigado, tratado como tal, torturado e quase morto, pelas mesmas forças governamentais aliadas contra o mal instituído.
O poder de apagar o nome de alguém em uma lista de ageiros é concedido a um governo quando se está em guerra. O poder de torturar e prender alguém ou mesmo vigiar é considerado um ato de defesa do sistema. A invasão de privacidade e outros atos de incredulidade não são nada incomuns em tempos de exceção. E o mundo a de exceção em exceção e torna regra os atos de domínio e abuso.
Por isso, Fu Lana quis aplaudir. Porque no fascismo e outros ismos, os homens de verde e ocre faziam a população civil aplaudir cenas irreais de desenvolvimento, enquanto brutais injustiças eram cometidas. E agora, o que vale, com certeza, é que o aplauso é espontâneo, verdadeiro. O homem está com saudades da paz.
Assistir direto a esses e outros filmes gera comparações estranhas. Entre as polícias políticas, por exemplo. Os alemães orientais em suas gabardines elegantes, devidamente credenciados pelo governo, batiam nas portas, e entravam perguntando "com licença, onde é o estúdio?", onde iam levantando prateleiras e quebrando o que não interessava, descuidadosamente. No final da visita, entregavam um cartão para que o dono da casa pudesse registrar algum improvável dano ao patrimônio.
Em outros casos, membros da polícia política de um país deixam que o trabalho sujo seja feito por pessoas de outra nacionalidade. Posicionados apenas como observadores (tipo: os Estados Unidos não torturam), fica muito mais fácil de se isentar da responsabilidade.
Outros, truculentos, entram nas casas arrebentando e batendo, mesmo em idosos, afirmando nem existirem, tratando as pessoas como escória e deixando um rastro inacreditável de destruição. Apócrifos e instituídos de um poder de exceção.
E a lista dos desatinos, rituais de guerra, é enorme: desde buracos sujos (onde cabe apenas um homem que é mantido em pé por muitos dias) a torturas com luzes e sons altíssimos, jogados sobre homens agrilhoados pelas mãos e pelos pés em um mesmo pino preso rente ao chão, sem que a eles seja permitido dormir ou descansar. Nunca saberemos descrever quantas violências foram e serão cometidas. Poderemos apenas aplaudir quando se tornarem públicas. Mesmo contra a vontade de Fu Lanestra e seu time de baratas falantes.