Ficadas do tempo

No tempo em que o chefe da oficina andava com um cordão pendurado no pescoço, para medir buracos de página e o que neles …

No tempo em que o chefe da oficina andava com um cordão pendurado no pescoço, para medir buracos de página e o que neles cabia, a gente chamava de "ficada" as matérias sobradas, quase sempre um segundo jornal, guardadas para posterior aproveitamento. Eram sempre coisas que não perdiam atualidade. Tanto fazia como deixava de fazer, fossem publicadas hoje ou daqui a 10 anos.


A reminiscência me vem à cabeça na leitura do livro de Antônio Pires, "Políticos nossos na Intimidade dos Fatos". É uma coleção de lembranças da sua vida pública, colhidas na informalidade dos bastidores, onde os protagonistas se movem sem maiores cerimônias.


Foi o episódio vivido por Carlos Santos e ali narrado que me trouxe de volta uma ficada da memória, para a qual até título eu já tinha composto: "O judeu e o negro nos caminhos da areia". Hoje, todos esses anos de distância, Carlos Santos já morto há tanto tempo, me soam doídas para mim as palavras de Lya Luft, em entrevista que me concedeu, na semana ada, sobre palavras que a gente devia ter dito aos outros, mas não o fizemos, assim como há as que dissemos e não deveríamos ter falado.


"O judeu e o negro nos caminhos da areia" contaria minha convivência com ele, no início dos anos 40 do século ado, em Rio Grande , quando eu o acompanhava em visitas a famílias negras pobres da Cidade Nova, bairro imenso, maior que a cidade velha, porém sem uma única rua calçada. Íamos por aquelas areias conversando sobre tudo, principalmente sobre racismo que nos afetava, eu como judeu, ele como negro.


Nunca lhe falei do quanto o que me dizia e me mostrava moldou em mim a consciência do preconceito, a necessidade de aceitar o "outro" sem restrições apenas por ser o "outro".  Que pena. Teria muitas coisas a lhe contar. A matéria foi ficando em um canto qualquer da lembrança, dia após dia, ano após ano, à espera de um "buraco" ao longo desses tempos tumultuosos, em que a gatunagem se quarteia no poder, como se fosse corrida de revezamento, e não deixa espaço para mais nada.


Eu era menino, aluno do curso primário do Ginásio Municipal Lemos Júnior, quando conheci Carlos Santos. A aula recém começara. Entrou um negro alto, com a lista dos alunos, para fazer a chamada. Um dos guris sabia seu nome e que tinha sido deputado.


Foi um zum-zum-zum. Prefeito, não, a gente via todos os dias e o nosso, além de careca, era surdo como uma porta, podia-se dizer palavrões para ele, que não ouvia, mas deputado, eram sempre solenes estátuas de pedra, como os governadores, o ínclito (ou seria ínclito?!) presidente da República e os demais salvadores da Pátria, salve, salve a Bem-Amada.


O que teria feito aquela estátua de pedra - no caso ébano - descer de seu pedestal e envergar a gabardine surrada, para tornar-se inspetor de alunos, o penúltimo na hierarquia funcional do Lemos Júnior?  Depois dele, só vinham os serventes.


Começaram maledicências, uma certa votação envolvendo o Sindicato da Banha, venda de voto por uma viagem a Montevidéu e uma casa, enfim a velha mesquinharia humana.


Carlos Santos conquistou desde logo o afeto da gurizada. Era um homem bondoso, capaz de entender as angústias de cada idade e pondo-se, como anteparo, entre os nossos excessos e o moralismo hipócrita de algum empistolado, escanchado na direção do colégio, com toda a certeza uma sinecura rendosa.


Quando os jornais rio-grandinos começaram a publicar as minhas primeiras redações, ficou feliz porque eu tinha juntado à a condição de aluno do Lemos Júnior. Foi então que falou em algo que havia lido e que mais tarde identifiquei como provérbio indiano: não esquecer jamais a árvore em cuja sombra refrigeramos a fadiga e cujos frutos saciam nossa fome e a nossa sede.


Estabelecemos sólida amizade que perdurou até a sua morte, mas me permitiu testemunhar e também assimilar como exemplo de vida a sua conduta irretocável. Enquanto criava os filhos, tratou de equipar-se para retomar a vida pública. Foi promovido de inspetor de alunos a chefe de disciplina e, finalmente, a secretário do Lemos Junior. Estudava à noite, concluiu o secundário, ingressou na Faculdade de Direito de Pelotas, na época em que a freqüência não era obrigatória, e mesmo assim foi o aluno mais brilhante daquela turma. Seu discurso de formatura - A predestinação do Direito - acabou livro, mandado imprimir pelos colegas.


Nos anos que se seguiram, Carlos Santos, conquistando sucessivos mandatos na Assembléia Legislativa do Estado e na Câmara Federal, inteiramente dedicado à vida pública, perpetuou seu nome entre as melhores figuras do parlamento.  Mas, lá atrás, na "ficada", a maledicência do sindicato da banha.


É Antônio Pires, neste "Políticos nossos na Intimidade dos Fatos", revelando confidência de José Antônio Aranha (Zuza Aranha), quem resgata Carlos Santos da injustiça:


"(?) era interesse de [Getúlio] Vargas derrotar o Governador [Flores da Cunha]. Para tanto o voto de Carlos Santos era fundamental. Zuza foi o escolhido pelo seu irmão [Oswaldo], que se dizia autorizado Presidente da República."


Zuza Aranha foi à casa de Carlos Santos convencê-lo a mudar o voto favorável a Flores. Diante da recusa, jogou a cartada final. Ofereceu-lhe o cargo de inspetor do Imposto de Consumo, a mais alta remuneração do serviço público de então.


"Carlos Santos (?) mexeu-se na cadeira, esfregou as mãos. Levantou-se e chamou os filhos. Com estes na sala, respondeu: - Pois é, Dr. Zuza. Eu teria muito prazer em corresponder ao Dr. Osvaldo e ao Dr. Getúlio. Mas se eu assim proceder com a recompensa oferecida, como poderei, depois, olhar na cara desses negrinhos? Não serei digno deles. Então o senhor leve a certeza de que eu não posso mudar meu voto."


Olho para trás, para as minhas ficadas do tempo. Está a figura daquele negro alto, trajando a gabardine surrada, empunhando a lista dos alunos. E atualizo o texto: (?) Entrou gigante negro, trajado de dignidade.

Autor

Jayme Copstein é jornalista, com atividade em jornal e rádio desde 1943,com agens pelos principais veículos de Porto Alegre. Trabalhou 22 anos no Grupo RBS como apresentador de programas e comentarista de opinião da Rádio Gaúcha, e atualmente é colunista do jornal O Sul e apresentador do programa 'Paredão', na Rádio Pampa. Detentor de vários prêmios, entre eles, Medalha de Prata (2º lugar) no Festival Internacional do Rádio de Nova York (1995), em 1997 publicou "Notas Curiosas da Espécie Humana" (AGE). Seu livro mais recente é "A Ópera dos vivos", editado em janeiro de 2008.

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