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O Brasil estarrecia-se com a confissão do maníaco que diz ter assassinado 12 meninos no Rio Grande do Sul, num dos mais escabrosos casos …
O Brasil estarrecia-se com a confissão do maníaco que diz ter assassinado 12 meninos no Rio Grande do Sul, num dos mais escabrosos casos de serial killer da história do país.Não poderia, portanto, haver dúvida sobre qual seria a abertura do Jornal Nacional. Mas não foi essa, e sim o restabelecimento de Norton Nascimento, que recebera um transplante de coração dias antes. Os elogios do ator aos médicos e a promessa de liderar campanhas de doação por certo emocionaram milhões de brasileiros - e por certo era importante. A reportagem durou quatro minutos. A do maníaco, que entrou na seqüência, ficou em três minutos e meio.
Desde que a mídia se deu conta que um caso de sofrimento com rosto, nome e sobrenome, toca mais o coração do público que milhares de vítimas anônimas, ficamos à mercê de toda sorte de interpretações. Norton é jovem, bonito e talentoso, trabalha na casa - um astro sem contrato com a emissora seria ignorado, mas isto é outra história -, e é claro que muita gente pelo país afora acompanhou o drama com carinho e fé, como quem reza para um filho. No entanto, não é preciso ser cínico, no mais preciso sentido do que os americanos qualificam de cinical, para considerar equivocado abrir o jornal com ele, e não com o maníaco.
Ah, mas a mídia descobriu também que precisamos levar boas notícias ao povo.
Ambas as premissas estão corretas. Podem produzir obras-primas ou distorções, dependendo de quem as maneja. Encher a boca ao falar da importância e dos direitos do leitor, ouvinte ou telespectador, ou discursar sobre o "pensar globalmente, agir localmente" são frutos da mesma árvore. Temos de reverenciar a modernidade no jornalismo enquanto ela representa comportamento profissional, verdade, ética. Trata-se, para ficar na moda, de ferramentas poderosas. Mas ferramentas poderosas em mãos inábeis podem levar o paciente à morte.
* Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha e Dona Deusa e seus arredores escandalosos e da ficção juvenil Elyakan e a Desordem dos Sete Mundos. É editor da revista Forbes Brasil e escreve semanalmente neste site.
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