Fellini no Brasil
Lá foi Fu Lana, para a locadora de vídeo, pegar o premiado filme brasileiro Estômago. Um filme com esse nome exigiria dela muito esforço. …
Lá foi Fu Lana, para a locadora de vídeo, pegar o premiado filme brasileiro Estômago. Um filme com esse nome exigiria dela muito esforço. Perdeu de ver no circuito normal do filme, mas aceitou ficar de fora. Não tem estômago para certos temas. Aliás, Fu Lana deve ser mesmo brasileira porque não encarou também Meu nome não é Johnny, nem a maior bilheteria brasileira, Se eu fosse você, 1 e 2. Um desprestígio nato. No entanto, ao assistir à premiação do Oscar brasileiro na televisão, pensou: se eles têm o homem de ouro, nós temos Grande Otelo. E sentiu-se ingrata com sua própria cultura. Pretende ar em revista os filmes brasileiros citados, atualizar seu faro, que, pelo menos em 2008, embotou de vez.
Primeiro, alimentou-se. Assistir a um filme como Estômago com fome, deve dar uma azia terrível. Depois, acomodou-se. E surgiu Raimundo Nonato, um cearense meio tímido, desajeitado, que chega à cidade grande, sem um tostão e com fome. Na história toda, Raimundo demonstra um talento primitivo para a culinária, onde vai se virando e aumentando a freguesia num boteco que tinha péssima fama. E, como existe olheiro pra tudo, em uma ou duas voltas, já está ele aprendendo sobre a cozinha italiana e junto com o cabeça-chata, todos os brasileiros que assistem ao filme. A definição de Nonato para o queijo gorgonzola ou para o processo de fermentação de vinhos é hilária.
Claro que a maioria do povo do Brasil, miserável, sem estudo e sem sorte, tem seus piores representantes na cadeia e, por uma e por outras, é lá que Nonato acaba ficando. Imaginem uma pessoa que conhece o gosto sofisticado e refinado da culinária italiana comer aquela gororoba do presídio. E, dentro da cela, ele vai resmungando dali e daqui até conseguir o apoio direto do líder local, com sua atuação na conquista pela sobrevivência e pelo poder.
Trata-se de uma comédia trágica, é claro, porque o brasileiro precisa de bom humor para levar a carga hiperpesada, e, com alguma indigestão, que faz parte dessa trajetória, o filme realmente merece o troféu de melhor de 2008 no Brasil.
No entanto, é nos extras da fita, isto é, do dvd, que está o pulo do gato. Tem um programa ali denominado Endoscopia, que vale por um curso inteiro de cinema. Desde o depoimento do diretor escolhendo o conto original sobre um cozinheiro na prisão, até a realização de uma máscara do ator João Miguel e seus milhares de pelos para o eio indiscreto de uma formiga no rosto de Raimundo Nonato. Os ensaios dos atores, primeiro em teatros e depois na locações, sem câmeras, acompanhados pelo diretor e pelo pessoal da fotografia, são de arrepiar, porque no filme, você percebe a naturalidade e a coesão da atuação.
Apesar de ser um filme de baixo orçamento, a equipe filma dentro de celas no presídio totalmente refeitas pela direção de arte e o boteco onde Nonato começa sua vida de cozinheiro é totalmente reformado para se adaptar às cenas. A produção de centenas de pratos de comida, utilizados em diversas tomadas, durante o filme, exigiu uma logística delicada. Pratos inteiros, já comidos parcialmente e em ossos, porcos inteiros e em carcaça, até o destaque para as comidas que tinham de parecer horrorosas mas que deveriam ser palatáveis para os atores, fazem parte dos detalhes apresentados em Endoscopia.
A música, feita e mixada na Itália, dá um certa fantasia ao trabalho, que é muito chão e um toque europeu sempre eleva a alma. A finalização do filme também é italiana.
A lista de premiações de Estômago é invejável, e consta também nos extras: França, Alemanha, Itália, África do Sul, Bélgica, Espanha, entre outros países. Sobre o diretor, é bom que se diga que ele formou-se em Cinema na Itália e que este é seu primeiro longa de ficção, mas sua experiência é vasta e também premiada em documentários e em outros formatos. Dados sobre o elenco revelam que a larga experiência de cada um justifica o excelente trabalho realizado.
Fu Lana percebeu que em cinema ainda come mortadela com queijo, o famoso Romeu e Julieta. Ainda não tinha conhecido nem a fórmula Anita e Garibaldi. Pega ali na locadora o dvd, pra saber do que se trata. Mas não esqueça de se alimentar antes. Primeiro, o corpo; depois, o espírito.