Felicidades pequenas e provisórias
De ontem ou de hoje: comer bergamota ao sol, ficar olhando o fogo sem pensar em nada, umas linhas do Borges ou do Quintana …
De ontem ou de hoje: comer bergamota ao sol, ficar olhando o fogo sem pensar em nada, umas linhas do Borges ou do Quintana ao acaso, a cama quente, cheiro de pão saindo do forno e café sendo ado, o som do mar depois de meses de cidade, o começo da Metamorfose, uma laranjeira carregada, gostar com sinceridade dos livros dos amigos, um cavalo levantando a cabeça todo atento, os olhos de inteligência amorosa do cachorro, saber fazer coisas com as mãos, acertar o ponto do filé, o momento em que a luz se apaga no cinema, o perfume de uma mulher recém-saída do banho, o primeiro gole de uma cerveja, o segundo gole de um vinho tinto, água, abrir e-mails de amigos bem cedinho, aqueles segundos antes de dormir, aquele texto que saiu fácil como quem mija e aquele que deu um trabalho dos diabos, a vertigem de olhar o céu à noite deitado na grama, o meio da Metamorfose, se sentir longe de tudo mas pertinho de você, ler na rede, trabalhar em casa nos dias de chuva, a lembrança de banhos de rio, biscoito comido em pescaria na infância, ar na frente da casa da namorada platônica com o tênis novo, o instante em que Deus se recolheu à sua insignificância, o vento num salgueiro, a endorfina batendo depois de seis quilômetros de corrida, um conto do Cortázar, mandar pra Maia um telegrama de Sombrio assinado pelo Nosferatu, o primeiro sim, não encabular mais, recortes do Pasquim com textos do Ivan Lessa, troca de olhares de entendimento, histórias contadas à noite diante da fogueira, os delírios muito lúcidos do Philip K. Dick, sessões de recordações de mancadas, brincar de cabra-cega ou de médico, crônicas do gigolô das palavras, alguma ironia do Marlowe, acertar a bolita de gude a dois metros e meio, o fim da Metamorfose, mulher com senso de humor, mulher com senso de humor, mulher com senso de humor, certas repetições e tantas, tantas coisas que não vão se repetir nunca mais.
A fúria do dragão nazareno
Não sei se vocês notaram, mas agora todo mundo é ninja. Até alienígenas de planetas distantes, até vampiros de uma Idade Média mais distante ainda. Onde vamos parar? Aguardo a versão ninja de Jesus Cristo e os doze apóstolos dando um pau nos romanos.
Escritores e prêmios
Há muitos escritores que vibram na concorrência de um prêmio, mesmo municipal. Parece a disputa pela última vaga no paraíso. Claro, se o cara ganha um prêmio, qualquer um, até um ursinho de pelúcia em quermesse na paróquia do bairro, fica alegre, sente um calorzinho bom, como se tivesse tomado uma golada de conhaque. Mas depois a vida segue. Não havia paraíso embora as vagas sejam muitas. Sempre torço para ver um escritor que ganhou um prêmio de dez mil reais, digamos, sendo verdadeiro numa entrevista, tipo:
Estagiária: "O que esse prêmio significa para o senhor?"
Escritor: "Dez mil reais".
Escritora nova
Mesmo que Simone Campos não fosse louca pelo Philip K. Dick, eu ia gostar dela. Olhem só o que escreveu esses dias: "Olhando a capa do caderno literário: 'Cansei de gente que escreveu livro importante. Quero ver gente que escreveu livro bom'."
Interpretações
Críticos americanos viram em Lolita, do Nabokov, a metáfora do fascínio da Europa, velha e decadente, pela América novinha em folha e indecifrável. Eu sou mais modesto. Prefiro ver o fascínio de um senhor de meia idade por uma menina bonitinha, nada indecifrável, por sinal. Estou com o García Márquez, que acha que certa crítica literária é um novo gênero de ficção.
Mais poema no ônibus
Uma das esperanças dos organizadores do Poema no Ônibus era que surgissem todo ano uns vinte ou trinta bons poetas novos. Isso demonstra ou um otimismo galopante ou uma total falta de senso estatístico.
Mal comparando
Às vezes tenho a impressão de que grande parte das políticas culturais se parece com andar de bicicleta ergométrica. O sujeito se esfalfa mas não sai do lugar.