Falo com...
Por Marino Boeira

Falo com Jacob Gorender ( 1923/ 2013) - O mais importante historiador marxista brasileiro, autor de clássicos como O Escravismo Colonial, Marx Sem Utopia e Combate nas Trevas -1925 - 2913.
- O senhor foi um dirigente importante do Partido Comunista Brasileiro, depois de 1964 divergiu da orientação de Prestes e fundou o PCBR. Como foi esse processo?
- "Durante um curso que fazia em Moscou, realizou-se o 20º Congresso do PC da União Soviética. O jornal Pravda começou a publicar artigos e discursos de vários dirigentes com críticas a Stalin. Depois, veio o famoso informe confidencial de Kruchev. Esse congresso vai abalar o PCB. Com o golpe de 64 houve uma divisão no partido sobre o que fazer. A minha posição, se coadunava com a do Apolônio de Carvalho. Nós fundamos o PCBR. Como éramos dissidentes do PCB, então numa conferência clandestina, criamos um outro partido, mantendo a sigla PCB e acrescentando o R, Partido Comunista Brasileiro Revolucionário.
- Esses partidos que se afastaram do Partidão se lançaram na luta armada. Em Combate nas Trevas, o senhor fala sobre eles. Qual foi sua posição nesse assunto?
- "A nossa posição era a de não entrar na onda dos assaltos naquele momento, era de considerar que uma atitude de participação na luta armada devia ter um certo sustento no movimento de massas, no movimento de opinião pública que não existia. A nossa posição era utópica, porque movimento de opinião pública maciço nas condições da ditadura naquele momento era inviável. A censura era completa. A repressão, tremenda. Quer dizer, sindicatos sob intervenção. Os dirigentes sindicais que tinham sido eleitos foram depostos. Era uma posição realmente utópica. Nós teríamos que esperar, o que ia demorar anos para se formar. E outros companheiros não queriam essa espera. No nosso caso, quem apoiava a luta armada imediata era Mário Alves. Era um companheiro formidável, de grande prestígio pessoal, se comportou heroicamente em todo esse episódio, e morreu sob tortura, literalmente, no Rio de Janeiro, no quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita. Enquanto nós deliberávamos, o Marighella com a Ação Libertadora Nacional já estava em ação, com assaltos e outros grupos foram se formando, Vanguarda Armada Revolucionária Palmares [VAR-Palmares], Vanguarda Popular Revolucionária [VPR)], aí foi o desastre da esquerda, se fragmentar em 20 ou 30 grupos ".
- O senhor esperava o golpe de 64?
- "Para mim, foi inesperado. Era impressão, não só minha, como de tanta gente que estava do lado democrático naquela época, que nós venceríamos a parada, que conseguiríamos realizar reformas importantes e levar o país para frente.
-Vamos falar sobre o seu livro mais conhecido, O Escravismo Colonial. Do que ele trata?
- "A escravidão contém a chave explicativa do ado brasileiro - durante mais de três séculos, o trabalho escravo se manteve como a principal e mais relevante força produtiva da sociedade brasileira. Enquanto a escravidão foi uma força motriz da unidade da América portuguesa - conservando-se íntegra no Brasil independente, na América espanhola, a escravidão só teve intensidade semelhante no Caribe. No Brasil, a escravidão existiu de norte a sul, da Amazônia ao Rio Grande do Sul. A classe dominante também era uma só, a de senhores de escravos, que revelou absoluto interesse em manter a preservação do sistema de exploração e a unidade territorial do País. O Escravismo Colonial pretende questionar, não apenas interpretações que erigiram o mercado em princípio de explicação das relações sociais, como também as que enfatizaram o monopólio da terra como fator relativamente autônomo da exploração e dominação de classe";
- Em O Marxismo Sem Utopia, o senhor faz uma crítica ao marxismo e seu caráter determinante. Qual é a sua posição sobre o tema?
- "A importância da contribuição de Marx ao pensamento moderno dificilmente pode ser contestada. Ele está na galeria de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, dos grandes pensadores que a humanidade já teve. Ele deu uma enorme contribuição ao conhecimento social, em especial à economia política (o que hoje se chama de ciência econômica), mas também à sociologia, ao que se denomina hoje ciência política, à teoria do Estado. E ainda, em primeiro lugar, à filosofia. Ninguém estudou uma formação social de maneira tão completa, tão holística, como fez Marx em O capital. Não se trata de uma obra só de economia, mas nela existe a análise mais profunda da estrutura e da dinâmica da sociedade moderna. Mas o sentido dela, o que Marx quis e o que está realmente expresso na obra, foi produzir a certeza, primeiro, de que o capitalismo é um sistema profundamente explorador, opressivo e injusto para a grande maioria da sociedade e, depois, difundir a certeza de que isso pode ser superado e o será por uma sociedade socialista. Esta é a ideia que tenho a respeito de O capital".
- Mas, para o senhor onde começam as "fraquezas" do Marxismo?
- "Se a contribuição de Marx me parece indiscutível e altíssima, o mesmo não se pode dizer do marxismo. É o marxismo como doutrina que hoje está em causa. O marxismo visava e visa fundamentar o objetivo socialista e abrange não só a obra de Marx como a de Engels e de seus sucessores - Lenin, Trotski, Bukharin, Gramsci, Kautsky, Lukács até pensadores mais recentes, como Marcuse e Althusser. Todos deram uma contribuição ao que se chama de marxismo. Que o marxismo esteja em causa me parece bastante evidente. O mundo mudou muito neste século. A sociedade capitalista que hoje domina o planeta é muito diferente tanto com relação à época de Marx como com relação à primeira metade do século XX. Mudou também, notavelmente, a configuração da classe operária. Estes fatores questionam o marxismo como teoria que não avançou com as mutações da realidade histórica. Eu jamais pensaria em depreciar esta obra. Mas a questão que se segue é que Marx tirou daí uma conclusão que não tem força lógica. O proletariado é a classe explorada específica do sistema capitalista, porém isso não significa que seja uma classe revolucionária, que também queira e possa se propor o objetivo de transformação socialista da sociedade, para tornar-se classe dominante. Tal conclusão não é uma consequência necessária. O proletariado pode ser uma classe explorada e ser, como afirmo, ontologicamente reformista"
- Isso invalida a ideia de um partido de formação marxista?
- "O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições."
- Falando em partidos, o que o senhor pensa do PT?
- "O PT foi capaz de manter a esperança ransformadora até a campanha de 1989, mas depois se desviou cada vez mais para um modelo francamente social-democrata. O que, em parte, é resultado de uma conjuntura mundial de refluxo da esquerda socialista e das ideias marxistas e a partir de 1990, consequência do início no Brasil do processo de reestruturação produtiva, que provocou um grande desemprego estrutural e uma crise ainda não sanada no movimento sindical. Tudo isto influi no PT. Se o partido se mostrar fiel a compromissos característicos da social-democracia combativa, que produziu o Estado de bem-estar social, será algo que podemos até mesmo considerar um ganho político. Mas se ele se vincular à atual social-democracia da terceira via, será realmente um desastre para o movimento socialista brasileiro".
- O senhor vê algum sentido de progresso na história humana?
- "O nosso processo de luta sempre implicará tentativa e erro, correção do erro e nova tentativa. A meu ver, podemos e devemos encontrar na própria realidade social os objetivos concretos, possíveis e viáveis, para transformá-la. A revolução socialista sempre implicará luta e sacrifícios. Porém, não precisará terminar tragicamente, como aconteceu no século XX".
