Falo com...
Por Marino Boeira

Falo com Dyonélio Machado, nascido em Quaraí, em 1895, e falecido em Porto Alegre, em 1985. Foi escritor, jornalista, médico, psicanalista e deputado comunista na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
- Dyonélio, você tem três ou quatro livros fundamentais para a literatura brasileira - Os Ratos (1936) O Louco do Cati (1942) e Deuses Econômicos (1966). Como é viver a vida para um grande escritor?
- "A grande lição que recebi da vida é que ela precisa ser vivida com uma enorme dose de indiferença. Indiferença diante dos triunfos, sempre tão poucos, como diante das frustrações, que tanto avultam, mesmo na mais obscura das vidas. Mesmo quando pareça insurgir-se contra ela".
- Como você analisa sua obra?
- "Eis uma pergunta que ficaria melhor dirigida ao leitor."
- Por que você se tornou médico psiquiatra?
- "Venho do século XIX. Venho de um século convulsionado por ideais, visando ao aperfeiçoamento da espécie humana, abrindo-lhe perspectivas cada vez mais amplas e arrojadas. Não ira que me fizesse médico, quando foi nele que a Medicina começou mesmo a ser uma ciência de aplicação social. Desse vasto campo, quantas vivências, indo do trivial ao dramático, sem todavia deixar de oferecer uns traços do pitoresco, guardei comigo."
- E a sua contribuição como psiquiatra?
- "Bem, eu fui um dos primeiros a utilizar os métodos psicanalíticos no Rio Grande do Sul. O professor Roberto Pinto Ribeiro cita-me como o primeiro tradutor de psicanálise no Rio Grande do Sul. Mas não quis ser um psicanalista. De modo algum. Seria difícil para mim aceitar uma doutrina ou uma teoria dogmática, que encontrasse explicações para tudo. A psicanálise encaminhou-se para isto. E eu sou um eclético que detesta qualquer unilateralismo, seja de ideias, seja de fatos. Não gosto e, como já disse, sou um rebelde".
- A Medicina tem alguma coisa a ver com a Literatura? Afinal, Guimarães Rosa e o senhor, possivelmente, como Graciliano Ramos, os maiores romancistas do Brasil, foram médicos.
- "Não. A medicina serve à literatura de ficção, sem escolha do literato. Haja vista aquela página, jamais igualada, da descrição de um delírio. Trabalho de romancista brasileiro e que recebeu, ao que se diz, a consagração dum dos maiores escritores da língua, Eça de Queirós, que a sabia de cor. Fora escrita por Machado de Assis, simples empregado público."
- E o Jornalismo?
- "A minha experiência jornalística tomou várias formas, sem nunca assumir o caráter de uma profissão."
- Como você se tornou um deputado pelo Partido Comunista na Assembleia Legislativa?
- "Eu fui muito amigo do doutor Borges de Medeiros, do doutor Protásio Alves, de toda a cúpula do Partido Republicano. Minha família esteve sempre envolvida com a política e eu sempre fui político. O Partido Republicano vinha sempre ao encontro das aspirações populares da época. O positivismo professava uma espécie de socialismo estatal. E o doutor Borges era assim. Nunca se esqueçam de que nós tínhamos a Viação Férrea estatizada, caso raro no Brasil, que tentamos criar um imposto progressivo sobre a terra, tentando utopicamente distribuir o latifúndio... Os maragatos de 1923, tendo à frente o homem de Pedras Altas, insurgiram-se contra este governo pequeno-burguês, de bacharéis e pequenos proprietários. Eles defendiam, sob a capa do liberalismo político, o interesse seu dos terratenentes. Eu não poderia concordar com aquela insurreição. No fundo, era o socialismo que estava nascendo... de Medeiros. Nesta escola eu me formei. Apenas, depois, procurei evoluir neste socialismo, enquanto meus mestres iniciais ficaram estacionados".
- Como foi ser um preso político?
- "Eu saí da cadeia, dois anos depois, sem culpa formada. A prisão dá material para muitas coisas. Uns fazem memórias - são célebres as de Sílvio Pelico -, mas eu achei melhor utilizar as minhas vivências em livros de ficção. Era um crime ter este material e não utilizá-lo. Eu não perderia tempo em camuflar qualquer que fosse a ditadura nacional."
- E a Semana de Arte Moderna de 1922?
- "Conversando numa das raras vezes, com Mário de Andrade e Osvaldo, vi que eles haviam feito aquilo, lá no Teatro Municipal, quase como uma pilhéria. E pegou. Mas nós não seguimos a geração de 1922. Os prosadores desta época, principalmente, conseguiram trazer o esoterismo do parnasianismo na poesia para a prosa. Esta tornou-se difícil, misteriosa, esotérica... Eu não compactuo com este gênero. Minha formação artística despreza o regionalismo, o esoterismo. Eu tenho a base moldada pelo positivismo de Augusto Comte, universalista geral. Uma arte feita para o maior número de pessoas entenderem. E assim foram os romancistas da minha geração. Bastante duradouros porque populares. Nós não seguimos os modernistas, que pareciam viver nas nuvens. A nossa tradição prende-se ao universalismo de Monteiro Lobato, por exemplo."
- O senhor poderia, como Érico Veríssimo, ter vivido apenas de direitos autorais, caso se dedicasse inteiramente à Literatura?
- "Não poderia. Desprezando a questão de saber se eu venderia ou não, há uma bem mais importante... Eu sou um rebelde. Eu não sou do público. Sou incapaz de escrever algo pensando no que vão achar, qual será a impressão que causará".
- Seu estilo sofreu alguma influência de algum autor português, quem sabe Eça de Queirós, pela absoluta correção que caracteriza, por exemplo, Os Ratos?
- "Não me é dado averiguar isso. A mim me parece que escrevo como sei, sem copiar ninguém, nem primar por uma originalidade. Tenho predileção pela boa linguagem, embora mais corriqueira. Muitas vezes sou procurado por pessoas um tanto ingênuas, que querem saber como se pode ser escritor. Meu conselho é este: escreva como quem fala. Não fui modernista. O que quis era, examinando o ado, entender o presente."
- E O Louco do Cati?
- "Foi um desafio com a morte, ou eu escrevia o livro ou morria. Eu já tinha tido um colapso periférico e ouvi o grito da minha mulher, que era igual ao grito das mulheres cujos maridos estavam morrendo, e eu como médico sabia disso. Eu reagi contra a morte. Utilizei minhas vivências neste período (Dyonélio Machado foi preso político de 1935 a 1937, saiu muito abalado da prisão e escreveu o romance em 1941) não com um caráter memorialista, mas como elemento para a ficção. Não achei que fosse mais duradouro, não, porque não tinha nenhuma esperança, mas que seria melhor. Para mim, pelo menos."
- O que o senhor acha de ser reconhecido unanimemente pela crítica e pelo público como um dos maiores escritores da língua portuguesa?
- "Eu acho que este reconhecimento não está muito certo, eu não sou nada disso. Eu não me sinto assim."
- A seu ver, o movimento modernista de 22 teve algum impacto na literatura brasileira e especificamente na sua obra?
- "Na minha obra não. Deve ter influenciado a literatura brasileira porque grande parte da mocidade que escreve toma a história da literatura brasileira a partir deste movimento. Examinando os meus livros, há de se ver que eu não fui modernista em coisa nenhuma. Ao contrário, o que eu quis era, examinando o ado, compreender o presente."
- E no Brasil, qual o romancista que mais fundamente o sensibiliza?
- "É o velho Machado de Assis. Não em toda a sua obra, é claro, mas em alguns livros, e o que eu mais destaco é o Memórias Póstumas de Brás Cubas. Certa vez li uma comparação de Machado de Assis com Dostoievski, que este tratava dos grandes crimes e Machado dos pequenos crimes. Eu já havia sentido isso antes de ler esta opinião."
- Porque o senhor nunca se candidatou à Academia Brasileira de Letras?
- "Certa vez, um cidadão telefonou-me do Rio e fez esta pergunta. Dei uma enorme gargalhada e ele considerou a gargalhada como resposta. Sou membro da Academia Rio-Grandense de Letras, como pagamento de uma dívida que eu tinha com meu Estado, a quem não dei nada. Ao Brasil não devo nada, estou dando meus livros a ele."
(Essa "entrevista" foi montada a partir das lembranças que tive com Dyonélio em 1960, como repórter de Última Hora e trechos das entrevistas que Dyonélio deu para Marcos Túlio de Rose, Leo Gilson Ribeiro, Danilo Ucha e José Montserrat Filho).
