Eu, sonhadora compulsiva

Perdi a mostra do De Chirico aqui em Porto Alegre. Embora ele não seja o meu favorito dos ilusionistas da pintura – sou muito …

Perdi a mostra do De Chirico aqui em Porto Alegre. Embora ele não seja o meu favorito dos ilusionistas da pintura - sou muito mais o Magritte, que considero acima até mesmo do Dali - que se valem dos delírios pra expressar sua arte, lamentei não ter conferido as imagens ao vivo. Só quem, como eu, chorou diante de uma tela do van Gogh, no Musée D'Orsay, sabe bem o que é este tipo de experiência mitológica. Coisa que nenhuma experiência virtual bate.
Amo os que conseguem, mesmo que palidamente, contar um sonho, uma imagem do não-acordado, aquilo que se a acredito que na alma da gente e que o sono nos permite. Ou, no caso dos ditos loucos, a insanidade produz. Estas visões, estas histórias absurdas ou tão perfeitas que só podem mesmo ser imaginárias são um dos grandes prazeres da minha vida. Sim: eu durmo para sonhar muito mais do que para descansar. E como sonho!
Quando, numa época da minha vida, eu fazia terapia com uma psiquiatra junguiana, era a minha delícia a tarefa diária de anotar os sonhos, em todos seus detalhes, para contar a ela e ouvir seus contrapontos a minhas interpretações. Por causa desta fase, comprei boa parte de uma coleção com os estudos do Carl Jung e devorei seu livro Memórias, Sonhos, Reflexões que terminei dando de presente a quem não merecia, embora pessoa formada em psicologia e teoricamente sensível ao tema.
Fico pasma quando alguém me diz, candidamente: "eu não sonho". Como assim, não sonha? "Não sonha ou esquece do que sonha?", sempre pergunto e fico inconformada com qualquer das duas respostas, já que acho um desperdício de vida e de compreensão da vida esquecer do sonhado. Mas, como sou só uma leiga sonhadora, trato de continuar cultivando este meu prazer solitário, intransferível e que jamais se repete, de ficar de olhos arregalados para dentro da minha cabeça, ou da minha alma, ou do inconsciente coletivo, seja o nome que for, a cada vez em que deito a cabeça num travesseiro.
Sonho muito. Em cor, em preto e branco, que estou voando (maravilha de todas as maravilhas), que subo escadas que vão se estreitando rumo a agens minúsculas (pavor total), que estou sentada num banheiro e que as paredes somem e fico exposta diante de uma rua cheia (tragicomédia, lógico) e que tenho encontros implausíveis, mas que sempre me causam um estranhamento que mistura bom e ruim e que sempre é curtido em todo seu poder.  Esta noite, sonhei que eu era responsável por um pequeno cão que alguém me havia confiado, era noite e eu estava preocupada em cuidar bem do bichinho. De repente, uma mulher surgiu no meu cenário com um outro cão, parecendo um mastim, que ela dizia estar ferido e o próprio cão "falava"comigo se queixando. Claro: reproduzi, do meu jeito, o horror e a revolta que me causou o maldito cara que enterrou um pequeno filhote de vira-latas porque fora denunciado por maltratar o animalzinho. Deu a lógica, portanto, na minha viagem onírica.
O que tem me intrigado, porém, é que tenho sonhado com uma pessoa que considero meu antípoda, em todos os sentidos, que tem me aparecido nas minhas horas de quase-morte muito mais do que eu poderia ar, e pior: um laço de amizade estreitíssimo nos une nessa hora. Desta vez, convenhamos, meu inconsciente me sacaneou mesmo: ela, a tal pessoa, me surgiu como aquela melhor amiga da infância e por mim foi assim tratada, com carinho, preocupação e uma atitude mãe bondosa e extremada. A vi chegar cansada e se atirar, com seus sapatos abotinados e seu tailleur horroroso de sempre, numa poltrona na sala em que eu estava trabalhando, uma espécie de redação de jornal. Ela, então, me falou de sua dor de cabeça, do seu câncer e eu me solidarizei tanto que ainda lhe disse: eu também me sinto assim por causa do meu câncer. De repente, a criatura se levantou rumo à porta, caminhando seu caminhar pesado de general e, ao cruzar a soleira eis que se não quando, deixou cair a sua imensa calçola bege até o tornozelo, como se um elástico houvesse se rompido e liberado a peça. Ela ficou chateada, e eu compadecida, sem saber o que fazer. Daí pra frente, não lembro do sonho.
Tudo seria engraçado se a pessoa sonhada, em questão, não fosse Dilma, a Rousseff! Desse jeito, juro, vou ter de achar um médium que contate com Jung, porque isso daí não é sonho, é pesadelo sem graça, que tira até a vontade de dormir. Alguém falou em sonho arquetípico? Que Deus me livre! Pior que isso, só a corrente do Freud para o tema.

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

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