Esta cidade

Por José Antonio Vieira da Cunha

Ah, também tenho minha linda história com Porto Alegre. Dezoito anos incompletos, o roteiro foi o mesmo seguido por milhares de jovens nas décadas de 60 e 70, ir para a Capital completar os estudos e se preparar para o vestibular. Um ciclo que muitos circunspectos cidadãos de hoje cumpriram: cursar pré-vestibular pela manhã, estagiar em algum lugar à tarde para garantir um quase salário-mínimo e estudar à noite no Julinho.

"Meu" cursinho foi aquele IPV inovador, conduzido por jovens brilhantes como Carlos Appel, Clóvis Duarte, Enéas de Souza, José Fogaça. Todos e seus colegas, sem exceção, ensinavam com um entusiasmo e alegria que indicavam para quem estava sentado ali ao lado de outra centena de adolescentes que, olha, vais ar, és capaz, acredite no teu taco. O Julinho era outro mundo, especialmente se a aula era noturna. O grêmio estudantil agitava como exigia aquela efervescência dos anos 60, e acompanhar as discussões engajadas era impositivo. Depois vinha o lazer. Matar a última aula, ir até o Cine Avenida, na esquina com a Venâncio Aires, e na saída, voltar a pé até o útero da Fernando Machado, depois de dividir um cachorro-quente com o amigo também duro como só ele.

Circular pelo Centro era enriquecedor, ir à Livraria do Globo, mágico, mesmo desconhecendo que naquele momento, no andar superior, provavelmente Mario Quintana e Erico Verissimo estivessem frente a frente, escrevendo, traduzindo, criando. Eram mesmo momentos mágicos, a começar pela decisão de comprar ali com seu próprio dinheiro o primeiro livro, O espião que saiu do frio, do John Le Carré.

A relação afetuosa com Porto Alegre começou bem antes, quando aos 10 anos encantava ver a obra de aterramento da Praia de Belas. Do alto da escadaria da João Manoel, soava incrível ver como a cidade crescia e se desenvolvia, a ponto, acreditava-se então, de precisar ganhar espaço em seu rio para crescer ainda mais. É progresso, sintetizava, feliz, minha vó Angelina. Ao circular pelas ruas no entorno da Duque de Caxias, ela não se cansava de comentar que o ritmo de obras indicava que a cidade crescia para cima em um ritmo alucinante.

Mas vó Angelina, um presente da Itália para o Brasil no início do século 20, não gostou nem um pouco quando mexeram com o Auditório Araújo Vianna. Não este aí da Redenção que até cobertura recebeu, mas um lindo junto à Praça da Matriz, com seus bancos de concreto cujo desconforto não era capaz de afastar a plateia ávida por cultura e boa música. 

Os fins de semana tinham a manhã de sábado dedicada aos estudos - tem vestibular ali no horizonte próximo, pois não? - e, encerrada a tarefa às vezes desgastante pontuada por lições de Latim e de Matemática, abria-se um mundo incrível de situações e possibilidades. O cinema tinha preferência e todas as atenções, e não era raro aproveitar o fato de as salas em via pública terem sessões contínuas a partir das duas da tarde para ver dois e quem sabe três filmes em um único dia. O que não era nada difícil: primeiro um filme no Guarani, depois outro no Imperial ao lado, e um terceiro no Cacique ou no Ópera ou no Vitória, opções era o que não faltava. 

Se o roteiro do fim de semana fosse a cidade natal, Porto Alegre estava muito presente na origem da viagem, pois a batalha número um exigia identificar o local onde embarcar naquela velha e tosca rodoviária. Era um perrengue toda vez, mas funcionava, após corridas frenéticas para todos os lados até identificar onde sairia o ônibus para Cachoeira.

Fazer vestibular, vibrar com a aprovação e iniciar a nova vida, eis o ciclo que se encerra no final dos anos 60. Porto Alegre cresceu, alargou avenidas, construiu aquele muro, fez muitas coisas erradas com sua cara e seu jeito, como acabar com o Araújo Vianna para construir ali mais um moderno prédio, esta espiga que sedia a Assembleia Legislativa. Mas criou sua alma e conseguiu rejuvenescer nos últimos tempos, com inserções urbanas que alteram para melhor a convivência e impulsionam a leveza de circular por suas ruas. De Porto Alegre me afastei pouco antes da pandemia e não haverá retorno, mas os melhores momentos de uma jornada inesquecível fazem dela A cidade.

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. Ainda tem duas agens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem cinco netos. E-mail para contato: [email protected]

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