Esquete particular

 Fu Lana estava dirigindo, na chuva, e pensava em quanto o mundo é frágil e o homem, efêmero. Um sopro acaba com ele. Um …

 Fu Lana estava dirigindo, na chuva, e pensava em quanto o mundo é frágil e o homem, efêmero. Um sopro acaba com ele. Um sopro cálido, gélido e mágico.


No domingo, Fu Lana deveria ter ido para a fila do Ephemères, do Teatro de Soleil. Para viver momentos importantes, momentos sentimentalmente importantes. Teria entrado, como todos os excedentes loucos por teatro que precisavam sofrer e sonhar com os diversos esquetes naqueles ambientes íntimos. Iria chorar lágrimas de verdade por cenas de ficção. Porém, seus planos foram sutilmente modificados. Sua mãe ligou: "Vem aqui, não vai ao teatro. Faz 15 dias que a gente não se vê. Vem para tomar um chá". Ok, mami. Você venceu.


A vida nos atropela e sempre que a mãe ligava pedindo uma carona da rodoviária para casa, ou do centro, ou por um pretexto qualquer para ver a filha, Fu Lana coincidentemente nunca podia. Era uma moça muito atarefada. Quando Fu Lana a convidava para algum eio, sua mãe já tinha outros compromissos. E assim iam se desencontrando, semana após semana, meses após meses, a vida toda. Naquele dia, era igualmente imperdível o programa cultural.


Das 15h à meia-noite, entre horas de espetáculo, jantar e entretenimento com a melhor trupe internacional que apresentava-se na cidade nos últimos 20 anos, tratava-se da última apresentação, os ingressos custavam apenas dez reais, e os comentários de seus amigos prometiam maravilhas: palcos circulares móveis, atos irrepreensíveis, excelentes atores trabalhando tanto em cena quanto na infra-estrutura, empurrando as traquitanas ou servindo iguarias, tipo queijos brancos, saladinhas, ragu de cordeiro, etc? Era totalmente imprescindível conhecer a vida naturalmente organizada do grupo Teatro de Soleil, como se estivéssemos em plena Cartucherie. Porém, Fu Lana não resistiu àquele chorinho baixinho de sua velha mãe.


E foi tomar aquele mesmo chazinho, entre a missa e os programas esportivos dos mesmos domingos. Foi ver sua mãe e seu pai falar quase das mesmas coisas, ouvir fofocas de família. Em três horas, já estava de volta. Teria agido bem? Teria sido melhor viver as esquetes escritas por outras mãos, certamente mais criativas e originais?  


Após uma noite normal de sono, o telefone tocava às seis da manhã. Dona Ruth, nem tão idosa, com apenas 77 anos, que andava até bem de saúde, havia falecido. Teve uma dorzinha no peito, deitou e dormiu. As freirinhas, vizinhas à sua casa, diagnosticaram: a irmã tinha ido para o céu. E levava com ela aqueles últimos sorrisos e comentários domingueiros, de um dia absolutamente normal. Fu Lana vivera seu próprio esquete sentimental importante. Tinha agora a sua própria efeméride. Finalmente, ela entendeu que trocou Ephemères por um cálido e mágico sopro de adeus.

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