Escritor que voa

Uma das verdades que até os imortais da academia conhecem é a que reza: não há temas menores, o tratamento é que faz a …

Uma das verdades que até os imortais da academia conhecem é a que reza: não há temas menores, o tratamento é que faz a diferença. Mas, como acontece com muitas verdades evidentes, às vezes é necessário que a esfreguem em nosso nariz. Um bom exemplo são os contos do Tchecov. Como dizia o Mario Quintana, a gente lê e parece que não aconteceu nada, mas aconteceu sim: aconteceu a vida.


Pensei nisso ao ler a novela Pai que voa, do Mário Goulart, lançada pela editora Dimensão. O gancho é a separação de um casal. Isso, por si só, é espinhoso de tratar, mas Mário Goulart complica mais ainda: tira o casal do primeiro plano, lida apenas com os filhos, principalmente com uma menina bem pequena, que tenta entender o que acontece e o que acontecerá. O risco dessa saída era cair numa novela das seis, com a tristeza e as vítimas fabricadas em série, ou cair num psicologismo que mais explica do que mostra, coisa fatal numa narrativa. Mário Goulart saiu ileso, usando a mesma estratégia das crianças: elabora o drama brincando.


Aí estamos diante de novo risco: o esvaziamento emocional que a maioria das comédias promove. Em nome do riso, entramos num universo praticamente inumano, com fantoches, com estereótipos, os três patetas socando o nariz ou a moleira uns dos outros. Isso é bom, de vez em quando, mas sempre? Seria como adotar uma dieta eterna de pizza. Há um outro humor, mais complexo, mais dolorido, digamos, que nasce justamente por encarar e aceitar as emoções. O que ele renega é o sentimentalismo, coisa muito diferente.


Mário Goulart consegue equilibrar a dor e a graça com uma delicadeza e uma desenvoltura incomuns. Pelo menos não lembro, agora, de nenhum livro brasileiro nessa linha, fora Tio herói (ganhador de uma porção de prêmios, entre eles um Jabuti) e Pê da vida, por coincidência também escritos pelo Mário Goulart e também publicados pela editora mineira. Talvez dê para comparar um pouco com aquele filme do Lasse Hallström, Minha vida de cachorro. As comédias dramáticas parecem ter encontrado no cinema um meio mais funcional, não sei por quê.


Espera aí. Há uma escritora brasileira, Ana Cristina Ayer de Oliveira, a paulista que se assina Índigo, que também se arrisca nessa arte difícil. Mário e Índigo têm ainda outra semelhança: escrevem para adolescentes, mas são lidos por todos. Não há nenhum milagre nisso: eles simplesmente não subestimam a inteligência do leitor. Pelo contrário, eles a provocam. A polícia devia ficar de olho, são extremamente perigosos.


Mário Goulart escreve pouco. Quero dizer, em todos os sentidos: poucos livros e livros com texto enxuto, só ossos e nervos, tipo Dalton Trevisan. Ele deve ter na parede aquela tirada do Elmore Leonard: "Meu conselho mais importante para todos vocês, aspirantes a escritor: ao escrever, tentem deixar de fora as partes que os leitores pulam". Ou partilha a preguiça do Stendhal, que preferia não descrever paisagens e vestuários dos personagens porque isso o tinha chateado nos outros autores.


Por falar em Stendhal, ele dizia que antes de começar a escrever, pela manhã, lia algumas páginas do Código Penal para pegar o tom. Não sei se Mário Goulart chega a tanto. Mas o certo é que nunca tenta escrever bonito, é um avarento em matéria de adjetivos vistosos, não está nem aí para o lirismo. É claro, simples, coloquial. Arma as cenas sem visar efeitos trágicos ou patéticos, nem espera ouvir a claque, que é a decorrência natural desses efeitos. As cenas valem por si mesmas, apenas. No máximo são sublinhadas pelo raciocínio das crianças - um raciocínio feito com aquela lógica meio absurda, meio afetiva das crianças. Então, no fim do texto, descobrimos que fica com a gente uma atmosfera, uma ressonância, se me perdoam o palavrão, poética. Fomos pegos à traição.


Nessas alturas, você deve estar matutando: "Se esse sujeito é tão bom assim, se não a de sacanagem ou delírio do Ernani, como eu nunca ouvi falar dele?" Olha, eu sei quem é Stephenie Meyer, por exemplo. Não li nenhum livro dela, nem vi o filme, mas nos encontramos várias vezes na imprensa. Sei que tem um punhado de livros na lista dos mais vendidos. Claro, eu sei que Stephenie Meyer é descartável, que daqui a um ano ou dois será substituída por outra ou outro da mesma laia. Nosso jornalismo "cultural" também. Nossas livrarias idem. Enfim? O que era mesmo que você estava perguntando?

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. ou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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