Errare humanum est, perseverare diabolicum

Aos leitores, perdão. Nada mais injusto que fazê-los vítimas de minha provecta idade. Desmemória e pé-na-cova andam juntos, ainda que andar, para pé-na-cova, pareça …

Aos leitores, perdão. Nada mais injusto que fazê-los vítimas de minha provecta idade. Desmemória e pé-na-cova andam juntos, ainda que andar, para pé-na-cova, pareça paradoxo. Escrevi aqui, com todos os dígitos, o testemunho do escritor francês Georges Arnaud: "A América do Sul não existe. Eu sei. Eu estive lá". Acontece que eu, sem ser consultado, nasci aqui e deixei o inconsciente vingar-se. Até troquei América Central por Sul. O escritor foi específico: "A Guatemala não existe?".


Quem percebeu minha caduquice foi o amigo, jornalista, publicitário, advogado, professor, tradutor e escritor José Monserrat  Filho. Cada um ponha isso na sua ordem, conforme o conhece. Sei de todos os seus talentos e simplifico: Mon.


Ao recolocar certa a epígrafe do livro Salário do Medo, Mon contou-me ser o exemplar dele presente de outro caríssimo amigo, o jornalista e escritor Léo Schlafman.


Mon e Schlafman fizeram o trajeto inverso que eu em relação ao Salário do Medo. Enquanto eles transitaram do livro para o filme, eu fiz o contrário. 


No IV Centenário da cidade de São Paulo, cuja fundação tenho certeza foi penitência imposta a Anchieta e Nóbrega, houve um Festival Internacional de Cinema, quando conheci Von Strohem, um Federico Fellini ainda não celebrizado, dancei rumba com a cubana Maria Antonieta Pons, do cinema mexicano, e entrevistei a muy linda rumena e estrela do cinema argentino Laura Hidalgo  (suspiros).


O filme Salário do Medo, de Henri-Georges Clouzot, foi lançado naquele Festival, em 1954. 


O ator português Luiz de Lima estudou e fez mímica com Marcel Marceau, em Paris e, pouco depois do Festival, foi lecionar e dirigir alunos da Escola de Arte Dramática de São Paulo. Ele aparecia nos primeiros 20 minutos do filme e encerrava sua participação enforcando-se numa árvore. O take final, ele morto, justificava a contratação de um mímico. Meses depois, era exibida em cinemas da capital paulista a versão comercial amputada, e Luiz de Lima ficou só nos créditos iniciais. O único consolo, conforme confissão dele, é que Flávio Rangel e eu fizemos questão de lhe dizer que havíamos visto a versão original.  Muito tempo depois, Jarbas arinho, ministro da Previdência Social da ditadura, referiu-se ao Salário do Medo, de Sartre, em vez de Arnaud. Eu estava atento e ele tomou cacete em "Cartas do Leitor", do Jornal do Brasil.


Voltando ao Mon, no início dos anos 60 do século ado, ele era um jovem jornalista gaúcho, da então toda-poderosa Caldas Júnior. Mon resolveu ir para Moscou, para a Universidade Patrice Lumumba, e de lá voltou com um cartucho de advogado. Voltou para a sua Porto Alegre, mas não para a Caldas Júnior, pois jornalista vindo de Moscou não combinava com a postura da casa.


Flávio Correa - o Faveco -, sem frescuras ideológicas, transformou o jornalista num redator da Standard Propaganda. Pouco depois, roubei o Mon do Faveco e ele veio para a matriz da Standard, no Rio, participar da minha equipe de criação. Não muito depois, talento consagrado, Mon fundava o Clube de Criação do Rio, do qual foi o primeiro presidente.


Mon permaneceu um ser ético e saiu da agência da qual era sócio por não concordar que uma conta tivesse uma taxa abaixo da lei.


Querendo dar mais-valia ao seu diploma de advogado, especializou-se em Direito Espacial. Por conta desse conhecimento, há muito, tem cadeira cativa nos vôos internacionais que o levam a seminários, congressos e palestras. O assunto já rendeu livros de sua especialidade. Na volta ao jornalismo, há mais de duas décadas, Monserrat, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, dirigiu a Revista da Ciência e dirige o Jornal da Ciência.


Foi gratificante para o mundo a recusa de reintegração do Mon na Caldas Júnior: assessor de Imprensa do Ministério da Ciência e Tecnologia, na gestão de Renato Archer, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Espacial, membro-fundador do CGEE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos), membro de todas as associações internacionais de Direito Espacial, há semanas, nas Nações Unidas, presidiu um grupo de trabalho sobre a utilização pacífica do espaço.


Quanto ao jornalista Léo Schlafman - que logo no início dos anos 60 veio trabalhar no Rio onde, ando por revistas e jornais, fincou pé no JB como editorialista, lá também publicou artigos sobre literatura, já transformados em livros - não cabe na crônica de hoje. Mas estará presente, como de hábito, no almoço que nós três nos oferecemos periodicamente. Deixo uma dica: A Verdade e a Mentira - Novos Caminhos para a Literatura, Editora Civilização Brasileira, de Léo Schlafman. 


Inté.

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Autor
Mario de Almeida é jornalista, publicitário e escritor.

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