Ensaio sobre a cegueira (II)

Em meio a escombros e ferros retorcidos, para alguns daqueles rostos que aparecem nas fotos de flagrantes, os corpos despedaçados não dizem mais nada. …

Em meio a escombros e ferros retorcidos, para alguns daqueles rostos que aparecem nas fotos de flagrantes, os corpos despedaçados não dizem mais nada. Eles olham para a câmera em completa apatia. De outro modo não poderiam ar os horrores da guerra, sob pena de enlouquecerem. A capacidade do ser humano em se adaptar à brutalidade e à barbárie de uma guerra é ilimitada, como o ódio. Não penso que os palestinos se valem do terror por índole e vocação. Penso que eles possuem mais ódio do que os israelenses, o ódio é a sua inspiração, o supremo senhor das causas para as quais se devotam.


Ódio só comparável ao ódio que os judeus (em geral todo mundo) nutrem pelo nazismo, muito embora esta infâmia tenha sido a maior aberração lesa-humanidade de todos os tempos. Seja como for, quase sempre o grão do ódio fecunda no terreno fértil das injustiças. Nesta guerra, em particular, não se trata mais de olho por olho, dente por dente. Instaurou-se um massacre a céu aberto, diante das câmeras, e a opinião leiga, longe da indiferença, está atordoada na medida em que palestinos e israelenses têm razão, mas quando todos estão loucos ninguém têm razão. É o mesmo viés de insanidade de estado que bombardeou o Iraque, ou aquele que soltou a bomba sobre Hiroshima e Nagazaki.


Abstraindo-se o teor ideológico, percebe-se que os israelenses choram, comovidos e abraçados, nas ocasiões em que morre um dos seus. Mas os palestinos não choram comovidos. Eles enlouquecem de dor e sofrimento. São tantas as mortes de crianças (400), mulheres e homens, que eles se espancam até sangrar. Espancam o físico para tentar remover a dor da alma. Eles batem com a cabeça no chão, arrancam os cabelos, rasgam as vestes e clamam aos céus. Isto não é ideológico. Isto é o horror, o avesso do avesso de alguma coisa inimaginável por nós, aqui no conforto da pacata e provinciana Porto Alegre*, no país em que prospera o idiotizado e idiotizante BBB, o circo eletrônico mitigante para quem só ganha o suficiente para o pão.


Contudo, há uma outra hostilidade tão devastadora quanto os bombardeios aéreos. Quando a dúvida aniquila as mínimas tentativas de se racionalizar o medo, abre-se um imenso espaço na alma em que o terror se implanta. Nenhum israelense em sã consciência pode deitar-se à noite, certo de que um míssil com carga explosiva não cairá em sua casa, onde moram seus filhos, a sua família. Conviver com esta ameaça diariamente é no mínimo torturante. De algum modo os israelenses que elegeram ministros e mandatários da linha dura e belicosa, na ilusão de sentirem-se mais protegidos, chamaram o terror para dentro das suas casas. Violência gera mais violência que recrudesce a violência, incentiva a retaliação e justifica mais violência, isso é velho como o tempo.


Não tenho formação aprimorada para fazer avaliações do ponto de vista histórico, geopolítico e econômico do conflito. Portanto, não me atreveria em aceitar um convite da imprensa para dar minha opinião formada sobre o assunto, pois não tenho opinião formada. Este texto reflete observações estritamente pessoais, e, talvez o sangue lusitano que possuo em boa medida, me faça assim? digamos, tão sentimental. As atrocidades que vejo pela TV, a foto do rosto da menina palestina que chora a morte do irmão ( celebrizada pela imprensa internacional), tudo isso, em momentos fugazes, me deixou com os olhos marejados. E agora justifico o asterísco na palavra Porto Alegre.


Dia desses ouvi no rádio do carro um programa da Band News, em que um "publicitário" estava depondo sobre o seu entendimento deste conflito. Me chamou a atenção o fato de que, entre suas frases desconexas e superficiais, ele deixava escapar uns risinhos. (A Band News seguramente deve ter isso gravado para quem quiser ouvir.) Risinhos? Mas como? Estavam debatendo sobre mais uma tragédia da humanidade, com centenas de mortes, em que uma bomba atingiu uma escola repleta de crianças. Como assim, risinhos? Mas o surrealismo não terminou aí. Por uma destas razões inexplicáveis, o programa desandou do foco, saiu do conflito do Oriente Médio e veio parar em Porto Alegre. Daí em diante começou a chinelagem. O tal "publicitário" concluiu sua "brilhante" participação no sobre a guerra na Faixa de Gaza reclamando que os donos não recolhem o cocô dos cachorros no Parcão, no Marinha e na Redenção. Esta é a banalização que transforma sangue e desespero em produto midiático para consumo faceirinho e descartável. Não sei o que é mais absurdo. Quando a cegueira da alienação não permite que se enxergue os contornos da ética, os espaços serão alegremente ocupados por atitudes indecentes e ofensivas. Nestas más horas cada vez mais me rendo às metáforas de Kafka ao tentar descrever sua solidão diante do pesadelo "oficial".

Autor

Paulo Tiaraju é publicitário, diretor de Criação da agência Match Point, cronista e violeiro. Foi o primeiro criativo gaúcho a ganhar o prêmio Publicitário do Ano, concedido pela Associação Riograndense de Propaganda (ARP). É pai de Gabriel Nunes Aquino.

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