Elza, a Garota
O romance de Sérgio Rodrigues tem duas partes, uma de frente para a outra, como se espera num jogo de espelhos. Na primeira, o …
O romance de Sérgio Rodrigues tem duas partes, uma de frente para a outra, como se espera num jogo de espelhos. Na primeira, o jornalista Sérgio Rodrigues dá as cartas sobre um dos efeitos colaterais da Intentona: o assassinato pelo Partido Comunista de Elza, uma garota de dezesseis anos, sob a acusação de traição. Seco, sensato, às vezes irônico, ele percorre os poucos documentos (muitas pastas foram esvaziadas dá para imaginar por quem) e analisa as muitas versões, da esquerda e da direita, ditadas pelas culpas e pelos interesses de sempre. Saímos desse texto com uma sensação de verdade, se não temos uma ideologia para atrapalhar, bem entendido.
Mas há, aí, uma espécie de escândalo para a razão: a história de Elza e toda a Intentona são absurdas. Ou mais, beiram a idiotia. Homens inteligentes e cheios de ideais generosos, engambelados pelas próprias fantasias adolescentes, se perdem da inteligência e da generosidade de tal forma que essa inteligência e essa generosidade dão o que pensar. Getúlio, fingindo acreditar nessas fantasias, multiplica-as por dez, cria outras, atrozes, para consolidar um poder não menos atroz. Se fosse um romance, o autor teria de ser um gênio para tornar isso tudo verossímil.
Na segunda parte, quem dá as cartas é o romancista Sérgio Rodrigues: Xerxes, um comunista quase centenário, contrata o jornalista Molina para contar sua vida, onde o nervo exposto é sua paixão por Elza, ou o contrário, a paixão por Elza encobre o nervo exposto. É preciso cuidado: Xerxes não é o que parece - leva jeito de quem saiu de um romance policial barato, arrastando um enredo meio cômico, meio folhetinesco. Cala-te boca. Não vamos estragar o prazer de o leitor ser enganado.
Molina é para Sérgio Rodrigues o que o professor Timofey Pnin é para Vladimir Nabokov, quer dizer, um alter ego quase patético e, por isso mesmo, comovente. Molina abre um espaço para o escritor se mover com mais liberdade, está ali para fazer o serviço sujo, como se espera de um bom personagem em qualquer ficção. Enfim, é a proverbial mão de gato para tirar as castanhas das brasas. O pessoal que ainda não ergueu os olhos do umbigo devia prestar atenção.
O ado visto por Xerxes, vamos descobrindo, vem filtrado por camadas de versões. O presente visto por Molina vem filtrado pela credulidade, pela falta de faro, pela fraqueza, pela confusão. É preciso contrastar as deformações de Xerxes com as de Molina. É preciso contrastar a realidade ficcional deles, bastante improvável, com a História improvável da primeira parte. Talvez então tropecemos numa verdade óbvia: a invenção quase sempre revela mais que os relatórios minuciosos.
Não há uma simetria de tipo matemático entre as duas partes. Isso poderia ser bonito, talvez prazeroso, certamente tranquilizador. O que há são sombras, sonhos, lacunas, mentiras e assombrações ligadas às vezes de modo imprevisto, ou desagradável. O que se pode dizer, por exemplo, sobre os conspiradores da Intentona assessorando a guerrilha pós-64 com a mesma competência política e militar demonstrada anteriormente? Ou o reflexo de Elza - uma boba alegre, no mínimo - sobre a cunhada adolescente de Molina? Ou os Rios de Janeiro: o de antes e o de agora? Não exatamente a cidade, mas o que foi feito dela, o que foi feito do mundo, o que foi feito de nós. Para os que suspiram aliviados porque os sonhos comunistas continuaram sonhos, o romance ergue esse Rio de Janeiro monstruoso que está bem aí, embaixo dos braços de Cristo, ou do olhar vazio do busto estilo realismo socialista de Getúlio. De quem é a culpa? Você é inocente? Em que rua você está, neste instante, em atitude suspeita? Sorria, você está sendo filmado.
Sérgio Rodrigues brinca com fogo. Acho que é isso que todo escritor deve fazer. Quem tem que se cuidar para não se chamuscar somos nós, os leitores.