E que assim seja!

Fazia tempo que eu não rezava. Nem é crise de fé. É desleixo mesmo. Coisa vergonhosa, eu sei. Tenho uma vizinha que acorda às …

Fazia tempo que eu não rezava. Nem é crise de fé. É desleixo mesmo. Coisa vergonhosa, eu sei. Tenho uma vizinha que acorda às cinco da manhã para ler a Bíblia, rezar e inclusive pedir pelos amigos, conhecidos, familiares, até por gente que ela mal conhece. E ela está longe de ser uma louca fanática: é uma mulher inteligente, professora, tradutora e intérprete, trabalha duramente, cuida de filho e de um pai velhinho que recentemente ficou viúvo.
Fui criada no Espiritismo, estudando as obras básicas, freqüentando mais de uma vez por semana a Sociedade Espírita Bezerra de Menezes que era uma casa simples mas sólida, instalada na Zona Norte de Porto Alegre e hoje é um imenso edifício com várias outras sedes em torno. Na minha época, o salão quadrado era de piso de taboão e as cadeiras de madeira tinham assento móvel  (e como a gente cuidava pra não fazer barulho ao levantar e baixar o assento, porque todo mundo olhava feio!), e os bons modos de então exigiam que homens se sentassem à direita e mulheres e crianças, à esquerda. Uma porta de folha dupla dava o a este salão que sempre foi, pra mim, mágico.
Um homem magro, alto, quase careca, óculos de aro eternamente sobre o nariz, um casacão preto que ia até o chão e, retirado da cabeça a cada vez que ele punha os pés no salão, um indefectível boné de maquis, comandava o comportamento geral. Seo Carlos! istrava mal o idioma, coitado, mas adorava falar bastante e gesticular, e bater a campainha para exigir silêncio absoluto quando a palestra estava para começar. Nem um zumbido de mosca se ouvia. Só a voz do velho Carlos, um doce homem que exercia sua autoridade para simplesmente nos apaziguar e preparar para aquele momento em que se buscava justo um pouco de sossego e misericórdia em nossas vidas.
ei décadas bebendo, encantada, as palestras feitas naquele velho salão que cheirava a óleo de peroba. Havia o Seo Ernesto, que intimamente em casa a gente chamava de "Alemão", com seu sotaque forte, a cara grande, o queixo quadrado, um olhar que atingia fundo até a última fileira. Tinha também o Coronel Olmiro, enérgico, voz de trovão, uma capacidade fantástica de pegar qualquer tema aberto ao acaso no Evangelho sobre a mesa e nos deixar embasbacados e totalmente convencidos de que havia punição para o mal e recompensa para o bem. E havia Seo Caetano, que, eu saberia muito mais tarde, foi o italiano solteirão que, depois de deixar a vida de bebedeiras e jogatina que levava no Club dos Caçadores (cabaré que faz parte da história de Porto Alegre) resolveu comprar um terreno e mandar erguer aquele prédio da rua Nova York, primeira sede própria da sociedade fundada em 1917 por velhos e novos espíritas, entre eles muitos jornalistas de A Federação cujos nomes li, encantada, quando resolvi escrever o livro contanto a história do "Bezerra", como sempre chamamos  a casa.
Seo Caetano era baixinho, usava chapéu panamá, ternos de linho claros e bem cortados e uma bengala. Um dia, me dei contad de que aquele pequeno curativo que ele trazia sobre o olho direito, começou a crescer, até que virou um tapa-olho. O câncer o levou embora. De modo discreto como sempre ele mesmo foi. Discreto,  mas indelével.
Hoje, não vou mais ao "Bezerra", que começou a ficar grande e impessoal demais para uma pobre religiosa da roça como eu, que queria silêncio, carinho e amizades como as que tive por lá durante meus verdes anos e boa parte da maturidade. Talvez por ter perdido esta conexão, aos poucos fui escoando pelo ralo minha vontade de enxergar além desta vida material que se desmancha em no máximo 100 anos. E com certeza foi a ausência das palavras que reverberavam pela boca dos oradores, na velha sede, que me deixou órfã de boas orações. Mas hoje, quando abri os olhos, pela manhã, espontaneamente rezei:  por um bom dia com paz e coragem, por forças para minha mãe continuar firme, por uma melhora na saúde de meu pai, por meus filhos acima de tudo e por meus afetos.  Pedi assim, sem grandes pretensões, como quem mergulha na vida depois de horas na incerteza do sono. Pedi a este Deus em que eu já acreditei tanto que, ao menos neste Natal, a gente mereça este pouco  pedido, que na verdade é muito. Quem sabe alguém ouviu? Seo Carlos, Seo Ernesto, Coronel Olmiro, Seo Caetano - vocês podem ser emissários do meu pedido?
Que Assim Seja!

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

Comments