Doutor, divago
Sou da safra de 1946, quando o planeta tinha mais chão do que se vê agora. Andei tanto de pé no chão que às …
Sou da safra de 1946, quando o planeta tinha mais chão do que se vê agora. Andei tanto de pé no chão que às vezes seguia meu próprio rastro só pra ver em que fase da minha vida ia parar. A infância dava voltas, e o eixo podia ser um cheiro no ar, um som curioso, uma bobagem sem origem nem objetivo. Cigarras e vagalumes valiam por um zoológico. Alguns mistérios profundos se agitavam no varal das roupas íntimas. Meu lampião de Alexandria rendia um livro velho e uma nuvem de picumã a cada ¼ litro de querosene. Das tantas maneiras de um temporal se armar, me encharquei em todas e de algumas ainda estou úmido. Valos e valetas estavam no mapa, uma cartografia de sombras e profundidades inesquecíveis. As penugens pelo corpo, arrepios novos, sem nenhum sopro ao redor. Terrenos baldios convidativos e quintais fechados tentadores. A gente corria; correrias por besteiras, por cachorro louco, por chamado de mãe, e correrias sem pressa, pra matar o tempo que tanto sobrava. Fiapo de grama na boca, mão no bolso, um crescendo na imaginação. Tamancos lá longe e a adivinhação da pessoa: homem, mulher, guria - guria! O azul do céu não saía do céu, a não ser que já fosse outra estação. O grude das pandorgas preteando nas mãos, e o garrão encardido por falta de banho. Um teco-teco no ar e sua chuva de papelzinho, um alarido em meio ao mormaço. Poços fundos, sempre poços, nunca torneiras nas casas. E bicas de rua, secas e ardentes, resfolegantes. E tempo livre para relembrar o distante verão anterior, ou o inverno ado, ninguém nem lembrava deles direito, tanto tempo já ara. Galos cantavam, como cantavam os galos. O rio criava marolas ao redor dos jatos das nossas mijadas. Mamoneiros eram uma amazônia aqui e ali. Havia purgantes e piolhos, neocid pra uns, rícino pra outros. Guirlandas de cascas de laranja-de-umbigo adornando o rés de muros? Sei, doutor, divago. Mas, pela primavera antecipada aí nas árvores da cidade, a natureza também. (Este texto já circulou por aqui, anos atrás. |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
O grande caça-níqueis mundial, vulgo Olimpíadas, fechou o caixa. Quer dizer, os capitalistas do COI capitalizaram bem capitalizada a audiência global, logo num cenário que de comunista só tem a fachada ditatorial. Alguém estranhou minha visão enviesada com tão nobre evento - puxa, Fraga, como pode você não se encantar com o congraçamento universal através do esporte? Encantado fiquei, sempre fico: é humano embasbacar-se com festas monumentais, inda mais com uma sincronia robótica nunca vista. O intervalo recruta nossa curiosidade e os anfitriões internacionais se tornaram mestres em competir pelo bolso dos anunciantes e da rentável atenção de populações pasmadas diante do plasma televisivo. O que me desencanta é a exploração dos esforços de milhares de atletas e esportistas, todos a serviço de um espetacular faturamento que, até prova em contrário, nunca reverte em benefício do esporte. Década após década, país após país, soam trombetas e jorram luzes, recordes desbancam recordes, e distribuem-se migalhas, digo, medalhas. Em paralelo, tirando as potências esportivas do planeta, o esporte - o amador, pois o esporte profissional jamais perde - esperneia nas nações emergentes e míngua nas subdesenvolvidas. Os atletas vencem por si, por dedicação pessoal e recursos próprios. No Brasil, este vasto e desorganizado estádio, existe apenas um núcleo poliesportivo com méritos, em Curitiba. Só lá um grupo de atletas recebe as condições ideais para treinar. Só lá parece pingar umas moedas dessa empolgante caixa registradora chamada Olimpíadas. Empolgar, empolga. Mas não dá pra escrever nada engraçado. |
![]() |
![]() |
![]() |
![]() |
O menu dos colunistas do Coletiva não pára de crescer. Mas agora estreou um que me obriga a prevenir o leitor. Cuidado com esse tal de Ernani, Ssó com ele não se distraia: há anos esse cara tem a tendência de juntar letras inquietas que se tornam palavras inquietantes, além do cacoete capcioso de reunir idéias que mal se cumprimentam. Assim, sem nem você perceber, o safado forma frases traiçoeiras de ler, induzindo a releituras sem sentido ou de duplos e triplos sentidos. Esse sorrateiro frasista faz isso desde o Quadrão, memorável (pra quem não sisqueceu) suplemento de humor da extinta Folha da Manhã, há inexatos 35 anos. Em nome de um inominável humor, Ernani se espalha não Ssó por revistas e jornais como também por livros, muitos infantis e vários grandinhos, e segue nessa por ser viciado em teclado, não em jornalismo. Como todo sujeito de talento, seu bestunto é atento com tudo quanto é assunto. Enfim, um humorista nato desde nascituro, um escritor experiente desde imaturo. Tem futuro, embora não mais que outros 50 anos. Pros novos leitores do Ernani, Ssó digo isso: não se descuidem. Em vez de dar o que ler, ele dá o que pensar. |
![]() |