Doçuras adas

Por José Antônio Moraes de Oliveira

"Sempre que penso em doces, 

estou de volta à infância".

Orson Welles.

 

Não saberia dizer quais são as mais persistentes recordações que guardo da infância - se os sons ou sabores. Dos sons, lembro do sino da igrejinha do Divino nas tardes de minha cidade. E do leve tilintar das garrafinhas do leiteiro Arnaldo, acordando a rua para um novo dia. E carrego ainda lembranças de perfumes e sabores antigos, como os da ambrosia que a mãe preparava em nosso fogão a lenha.

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Estudiosos afirmam que as memórias mais duradouras são as relacionadas com os sentidos de audição, olfato e paladar. O que deve explicar porque esquecemos o nome de um velho amigo ou o rosto de um parente querido, mas distante. Mas ao mesmo tempo, nos bastam alguns acordes de uma velha marchinha de carnaval para redespertar um namorico há muito esquecido ou o salão de baile que não mais existe. 

E nos ajuda a entender porque, ao lembrar doces da meninice, vislumbro as compoteiras de vidro azul na alta prateleira, onde a mãe guardava suas preciosas doçarias. No mesmo instante, em curiosa coincidência, posso sentir, da minha janela, o perfume dos pêssegos no pomar da fazenda dos avós. Acho que as memórias não respeitam a geografia, nem os calendários. 

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No quintal de nosso sobrado se hospedavam muitos dos meus sonhos e fantasias. Subindo nos galhos da figueira, eu avistava  as luzes coloridas da igrejinha do Bom Fim e os rojões que anunciavam a festa do Divino. E imaginava ear entre as barracas de biscoitos de polvilho, cocadas, pés-de-moleque e de refresco de framboesa. E ir olhar a barraca dos jogos de argola que tinha como prêmios latas de goiabada da Cica. Mas meus sonhos não duravam muito, pois logo vinha a reprimenda da mãe, recomendando cuidado com os galhos carregados de figos maduros, prontos para o ão de fazer doce. 

Eram muitos os desejos e apetites naqueles tempos em que a vida era mais simples e leve. Haviam os mil-folhas recheados de creme de ovos da vendinha de Dona Bertha. Era um doce difícil de comer na rua, com a cobertura de glacê se esfarelando nas mãos e o recheio de ovos pingando na camisa branca. E ainda custavam mais do que um Gibi mensal. Mas melhor disso tudo era o bolo de chocolate que a família Meneghetti nos enviava no Natal - era muito chic, vinha em um prato de cristal, coberto por um guardanapo bordado. Sem esquecer dos docinhos ídiches de nozes e mel que Dona Esther oferecia aos vizinhos no ano novo israelita.

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Mas o bolo dos Meneghetti e os docinhos de Dona Esther só apareciam nos dias de festa. E como nosso pai não podia ar sem doçarias, ao final de mês, chegava com uma iguaria, das que provamos na infância e que desapareceram para todo sempre. 

Era a afamada torta de nozes da Confeitaria Schramm, da Rua da Praia, feita apenas por encomenda. Devia pesar uns dois quilos e durava uma semana, mesmo com as grossas fatias servidas pela mãe e que deixava brilhando nossos olhos gulosos.

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Para o pai estava reservado o centro redondo da torta, que ele devorava com um sorriso de juvenil felicidade. Tinha uma noz inteira em cima e três camadas de doce-de-leite. Posso me iludir, mas às vezes ainda sinto o gosto do chocolate com nozes e do perfume de rum que emanava das fatias no prato. 

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem agens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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