Ditadura e liberdade

Antes de mais nada, ela era jornalista. Na escolha entre profissões, algum detalhe sempre se destaca. Naquela tarde, em um seminário sobre Erico Verissimo*, …

Antes de mais nada, ela era jornalista. Na escolha entre profissões, algum detalhe sempre se destaca. Naquela tarde, em um seminário sobre Erico Verissimo*, queria prestar homenagem pessoal ao autor. Na abertura, reconhece sua amiga Valéria no papel de Bibiana ao som de um vento soturno e uma vela acesa. Seria melhor na direção de cena que houvesse maior expressão corporal. Poderia ajudar na imaginação de personagens fortes e corajosos, afinal, esse era o feminino de Erico. Aqueles sapatos da atriz também não combinavam. Bibiana não usaria salto quadrado! Esse incômodo logo se explicou: Erico fora um pintor de cenas e sobre sua profundidade falou Carlos Heitor Cony.


Os cinco primeiros minutos foram de Luis Fernando Verissimo. Na verdade, o filho de Erico fez algumas indagações. Seu pai não se sentia devidamente reconhecido no Brasil. Como o autor era visto no resto do país? Revelou até que percebia um certo constrangimento do pai sobre o assunto.


Heitor iniciou falando em contraponto. Referindo-se a uma tradução feita por Erico do romance de Aldous Huxley, denominado Contraponto. Dali, teria Erico desenvolvido o conceito que faltava na literatura brasileira? O eixo Z. A terceira dimensão. Pelo sim e pelo não, Erico desfila cenas completas. Elas têm profundidade histórica. Segundo Cony, outros escritores brasileiros (p.ex. Graciliano Ramos, Jorge Amado, Machado de Assis) trabalhavam em closes. Slides geniais! No entanto, lhes faltava perspectiva histórica.


Sobre Machado, fez a ressalva de que há indiscutível profundidade psicológica em seu trabalho, porém apenas disposta em primeiros planos. Mencionou a presença da atmosfera sa na literatura, época em que Erico inovou trazendo a técnica americana. No entanto, o convidado estrangeiro na terra de gaúchos não encontra em Erico um cosmopolita. "Ele é uma ligação para o universal. Sem sair de casa, saindo apenas para suas cidades fictícias, ele escreve a aldeia, captando a perspectiva da alma do gaúcho, chegando à universalidade. Foi personagem da própria vida. De seu pai, Sebastião, Erico herdou o exercício da hombridade, não no sentido viril, mas do conceito de homem".


Foi aí que chegou a hora do lado B. Sobre a polêmica e a crítica, o porquê de seu reconhecimento não estar de acordo com o peso de sua obra.


Desde os anos 30 até os anos 60, portanto por mais de quarenta anos, Erico foi acusado de estar aliado ao pensamento norte-americano. Em sua defesa (e todos o defenderam): ele nunca aceitou ser partidário. Era um hombre, não precisava de partido nenhum. Todos os outros autores contemporâneos entraram no Partido Comunista. No entanto, saber que Stálin havia se associado a Hitler para estuprar a Polônia fez com que alguns tivessem pudor de si mesmos e se afastassem do partido. Erico Verissimo manteve sua independência.


Assemelha-se hoje à frustração de quem participa de partidos na esquerda brasileira.


Conservando sua liberdade, Erico soube ver o contraponto. Enquanto acontecem coisas em Santa Fé, no pano de fundo, estão as guerras antigas ou Borges de Medeiros, em uma literatura cênica.


No entanto, era tempo de segunda guerra mundial. O Brasil, em algumas ações militares, estava alinhado com os americanos. Naquela época, os Estados Unidos significavam o antifachismo, contra o que reinava na Europa.


Dez anos depois, Erico morou nos Estados Unidos, onde também fez amizade com Clarice Lispector. Participava da Organização dos Estados Americanos, representante na área cultural. Apesar de escrever muito bem em inglês, em português não traçara uma linha enquanto estivera por lá. Precisava voltar para casa.


O público podia perguntar à vontade. Foi uma excelente oportunidade de ouvir LFV. Através dele, soubemos mais de Erico Verissimo: que adorava viver em família, um pouco porque não teve essa oportunidade a partir da adolescência por ter seus pais separados. Que tinha grande capacidade para o teatro, para dramatizar e definir bem as características diferentes de seus personagens. Que sabia cantar e pintar, até pensara em ser pintor ou cantor. Que imitava familiares com facilidade. Que era um pouco gozador, e que adorava, além de desenhar, reger orquestras imaginárias. Já em sua casa, depois de morar em pequenos apartamentos em Porto Alegre, Erico escrevia em sua toca. Para corrigir as laudas, no entanto, precisava subir para a sala, onde em uma poltrona vermelha, mantinha uma tábua de apoio. Nela, rabiscava, caricaturava, sonhava. As memórias dele saíram também daqueles momentos. Menino, curioso, de extrema autocrítica, era severo consigo. Porém, sabia que alguém deveria segurar a lâmpada para que um paramédico pudesse operar a podridão humana. Assim o fizera na antiga farmácia dos pais em Cruz Alta.


Fu Lana esboçou algumas perguntas: quando o Erico vai se mudar para o Centro Cultural CEEE/Erico Verissimo? Leu, rasgou o papel e aplaudiu ao final da palestra.  


*Seminário Erico, retratos da vida inteira. Promoção Copesul Cultural. 07/06/2005 na Casa de Cultura Mario Quintana em Porto Alegre/RS

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