Discutir a relação

Não mais que de repente, ele me encarou com aquele olhar 43 e sugeriu: "Acho que está na hora da gente discutir a relação". …

Não mais que de repente, ele me encarou com aquele olhar 43 e sugeriu: "Acho que está na hora da gente discutir a relação". Confesso que preferia não ter escutado uma proposta tão indecente, mas parecia tarde para fingir que dormira sentada e, assim, calar antecipadamente a dor dos momentos seguintes. Alguns quilômetros de estrada já me ensinaram que discutir a relação, dar um tempo, repensar as atitudes e traçar novas promessas nada mais significam do que um jeito elegante, sutil e covarde de dizer que está tudo terminado. É muito blá, blá, blá para enfeitar o fim de um caso, compreendem ?


O paradoxo é que a ferramenta é elegante, uma vez que não chega de susto no que vai levar o fora, amaciando o terreno para o tiro de misericórdia; e ao mesmo tempo covarde, já que não permite que o colocado para escanteio possa argumentar ou mesmo questionar. O viés sutil do "discutir a relação" é que ele deve ser lido, nas entrelinhas, como: é melhor você procurar a sua turma;  ou não estou mais no mesmo time que você; ou quero curtir um pouco de liberdade; ou essa tribo não é mais a minha. E tem a clássica: preciso de mais espaço (calma, que é necessário um certo acúmulo para conhecer todas).


Se os contos de fadas existissem de verdade (tá, foi só um momento, eu acredito em Papai Noel), os relacionamentos não teriam fim. Como é complicado esperar que duas pessoas consigam viver felizes, nos dias de hoje, para sempre, acordando juntas, dividindo banheiro, resmungando, torcendo para times diferentes, seria, no mínimo, bom que elas deixassem de gostar na mesma hora. Cumã??? Sim. Não seria necessário "discutir a relação". Apenas a divisão dos pertences. Nem precisa levar tudo na mesma hora. Pode buscar aos poucos, quando encontrar um lugar ideal para morar.


Mas, vocês concordam comigo que o ser humano adora dificultar o que pode ser simples, não é? Não foi diferente na minha última separação. Claro que nem chegamos a discutir a relação. Já não valia mais a pena. Me perdoem os homens, mas a mulher percebe quando algo não anda bem. Talvez seja a tal intuição feminina. Pois, ito, há algum tempo ele sempre encontrava um jeito de me evitar. Uma noite alegava dor de cabeça. Na manhã seguinte, tinha que dar atenção para as crianças. E, às vezes (que paranóia, pensava a neurótica), ele parecia completamente exausto.


Assim, no final de semana em que ele me desarmou dizendo que deveríamos discutir a relação, nem ousei questionar o que poderia ter acontecido (embora tenham me ado pela cabeça todas as hipóteses que uma mente fértil feminina sabe muito bem: é outra mulher? me trocou por duas de 20? e se desabrochou seu outro lado?).  Restava-me não fazer cena de cinema. Nem quebrar os pratos. Nem chorar encostada na porta. Peguei a cópia da chave. Separei alguns objetos pessoais e não mostrei, em momento algum do processo de "desconstituição" da relação, sinais de fraqueza.


O currículo de mulher madura e bem resolvida me ensinou que é sempre aconselhável salvar todos os arquivos, em CDs, disquetes, imprimir, enfim, ter uma vasta documentação antes de deletar tudo. Foi o que fiz. Pastas zipadas. Textos no word. Compromissos no Excel. Momento doloroso de afastamento. Tive que deslocar uns enfeites, mimos, recadinhos que estavam colados nele. Ah, sei lá, coisas íntimas. Uma certa privacidade é bom que seja mantida entre quatro paredes. Não é legal que saibam dos nossos encontros e desencontros nos calendários grudados nos ímãs.


Não entreguei os pontos. Até o último minuto, fui forte. Quando o técnico em informática levou meu computador, com quem eu tinha um relacionamento estável e irreparável desde 1999, para a recauchutagem total, só então deixei cair uma lágrima de despedida. Hoje, repousa na minha bancada um bem mais potente, mais disposto, mais veloz, com mais memória. Posso dizer que troquei um de 40 por dois de 20. Mas, fazer o quê? O Juquinha, meu ex-computador, é que ficou fora do sistema. Tinha que partir para outro.   

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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