Dia do "te vira"

Por Renato Dornelles

Quando criança, aprendi (não sei se o verbo é o adequado) na escola que o 13 de maio era uma data histórica, importante e que deveria ser comemorada. Já há algum tempo, não nego a importância histórica, mas contesto muito a ideia de comemoração.

O primeiro motivo para não comemorar, como pregavam os professores durante minha fase de Primário (atual Ensino Fundamental), no auge da Ditadura Militar, entre 1971 e 1974, foi que aprendíamos sobre a abolição da escravatura como um presente dado pelo Império brasileiro aos negros escravizados.

Sim, como se nós negros tivéssemos ganho um presentão com a abolição e herdado uma dívida de gratidão com quem explorou, das formas mais desumanas possíveis, nossos anteados.

As razões pelas quais o Brasil aboliu a escravidão (aliás, último país das Américas a adotar a medida) também nos deixam clara a ideia de que não há o que se comemorar. Antes de questões humanitárias e de um reconhecimento do quanto o regime escravocrata era injusto, pesaram pressões externas para que o Brasil deixasse um regime praticamente feudal e aderisse ao capitalismo, já vigente em outras nações.

Mas, o pior de tudo, foi a sequência do 13 de maio. Ainda que muitos escravizados e seus descendentes tenham justificadamente comemorado nesta data, 137 anos atrás, uma vez que, em tese, estavam livres do trabalho forçado, do açoite e da chibata, entre outras formas de agressão, a da Lei Áurea foi uma espécie de "te vira".

Os libertos naquele 13 de maio não receberam qualquer reparação ou auxílio para dar sequência às suas vidas. Foram transferidos das senzalas para a miséria social e da escravidão para o desemprego.

Além disso, as legislações subsequentes foram armadilhas para que o cárcere dividisse com as (ainda em formação0 favelas, o destino do povo negro. O desemprego dos ex-escravizados e de seus descendentes era considerado vadiagem, com previsão de prisão, assim como a prática da capoeira e a execução do samba. Por sua vez, a prática de religiões de matriz africana era equiparada ao curandeirismo, também punido com o cárcere.

Enfim, a tão anunciada liberdade resultou na miséria social do povo negro, na perseguição a seus elementos culturais e religiosos e no racismo estrutural encrustado até hoje nas relações sociais. Sendo assim, o que há para comemorar?     

Autor
Jornalista, escritor, roteirista, produtor, sócio-diretor da editora/produtora Falange Produções, é formado em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) (1986), com especialização em Cinema e Linguagem Audiovisual pela Universidade Estácio de Sá (2021). No Jornalismo, durante 33 anos atuou como repórter, editor e colunista, tendo recebido cerca de 40 prêmios. No Audiovisual, nos últimos 10 anos atuou em funções de codireção, roteiro e produção. Codirigiu e roteirizou os premiados documentários em longa-metragem 'Central - O Poder das Facções no Maior Presídio do Brasil' e 'Olha Pra Elas', e as séries de TV documentais 'Retratos do Cárcere' e 'Violadas e Segregadas'. Na Literatura, é autor dos livros 'Falange Gaúcha', 'A Cor da Esperança' e, em parceria com Tatiana Sager, 'Paz nas Prisões, Guerra nas Ruas'. E-mail para contato: [email protected]

Comments