De tudo fica um pouco…

… ficou um poucode ruga na vossa testa,retrato.(Carlos Drummond de Andrade) Dia 26 de outubro de 1988, acordo num hotel em São Paulo, abro …

? ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
(Carlos Drummond de Andrade)


Dia 26 de outubro de 1988, acordo num hotel em São Paulo, abro um jornal e levo uma porrada: "Morre Flávio Rangel". Dez dias antes, visitara-o em sua casa, no Rio, sem saber que era a última vez. Após prolongado tratamento de um câncer no pulmão, foi-se o amado amigo-irmão. Conheci Flávio no então curso Clássico, levei-o para assistir ao primeiro espetáculo de teatro em sua vida - A Falecida, de Nelson Rodrigues - e, pouco depois, quando assistimos a Jean Louis Barrault, em Le Livre de Christophe Colombe, Flávio, a quem eu apresentara a nossa turma da Biblioteca Municipal, começou a devorar livros de e sobre teatro, do qual se tornaria um dos mais importantes diretores brasileiros.


Republico aqui um trecho do livro sobre a grande atriz Cacilda Becker e que remete a algumas pessoas da "turma da estátua" daquela biblioteca, hoje Mário de Andrade:


"Os integrantes desse grupo, que só existiu informalmente, ainda dariam muito o que falar. Participaram dele o dramaturgo Manoel Carlos (teledramaturgo hoje ligado à Globo, então já envolvido com TV); Bento Prado Jr., filósofo; Roberto Schwarz, ensaísta e crítico literário; Mário de Almeida, jornalista; Flávio Rangel, também candidato a diretor de teatro, e seu irmão Paulo, aluno da Escola de Arte Dramática; o cenógrafo Cyro del Nero; o ator Fábio Sabag e outros. Uma turminha da pesada, em particular para o teatro?".


Cyro, graças a uma "vaquinha" entre aquela turma, foi à Grécia há meio século, não parou mais de ir e escreveu um maravilhoso "livrinho", Com a Grécia na Mochila, 50 Anos de Peregrinação na Grécia. Com extenso currículo como cenógrafo internacional, designer e mestre em arquitetura promocional, há anos é professor titular de Cenografia e Indumentária Teatral, da Pós-graduação da Escola de Comunicações da Universidade de São Paulo.


Dia 28 de dezembro ado, ele completou 75 anos e telefonei para São Paulo:


- Não se assuste, já ei por isso, não dói.


Sábado, 13 de janeiro, em casa, na Barra da Tijuca, leio no obituário de O Globo:


"Bento Prado de Almeida Ferraz Júnior era considerado um dos maiores filósofos brasileiros. Pertencia aos quadros do departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), interior paulista. Antes, entre 1961 e 1969, atuara na Universidade de São Paulo (USP), de onde foi afastado pela ditadura militar. O filósofo morreu ontem de madrugada, aos 69 anos, vítima de uma parada cardiorrespiratória decorrente de um câncer de laringe. A UFSCar decretou luto de três dias. Seu corpo foi velado no saguão da reitoria da universidade."


Acrescento que Bento, com apenas 28 anos, com tese publicada sobre Bergson, obteve o título de professor livre-docente da USP. Entre suas importantes obras, destacam-se: Filosofia, Literatura e Psicanálise; Filosofia da Psicanálise; Erro; Ilusão; Loucura e Alguns Ensaios.


O choque e a tristeza misturaram-se à nostalgia e lembraram uma história bonita.


Manoel Carlos, há mais de 20 anos, assinava uma crônica semanal no diário carioca "Tribuna da Imprensa" e escreveu sobre uma foto de 1º de setembro de 1956, na Praça da República, em São Paulo, onde estavam, muito jovens, Flávio, Bento, Cyro e ele, Maneco. Como Bento viria ao Rio, dias depois, fazer uma palestra, Maneco escreveu na Tribuna que Cyro fora convocado para vir também, para que eu, que morava na época daquela antiga foto no Rio, pudesse ser devidamente  inserido, em outra foto, como o quinto "mosqueteiro" com o qual Dumas jamais sonhou. Cyro veio, nós cinco almoçamos no Sheraton, Maneco contratou um profissional que nos fotografou, sumiu e  jamais foi encontrado.


Quanto às fotos desaparecidas, enquanto houver memória viva, são absolutamente dispensáveis.


Inté.

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Autor
Mario de Almeida é jornalista, publicitário e escritor.

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