De retalho e rebotalho

Ele é o tal. Bem talhado, é leve e seu design é estruturado para conservar permanentemente a aparência impecável. Seu material não proveio de …



























Ele é o tal. Bem talhado, é leve e seu design é estruturado para conservar permanentemente a aparência impecável. Seu material não proveio de Kripton, logo, não traz a indestrutibilidade do uniforme do Super-Homem. Sua blindagem, interna, não é nem de kevlar nem de aramida, as proteções mais eficientes dos coletes à prova de bala - a maioria tem uma entretela, tira de uns 6x35cm que absorve a goma que as adeiras especializadas se encarregam de afixar nele. Após este ritual de prensagem a altas temperaturas, sob vapor, ele está outra vez apto a desempenhar suas funções de fiel escudeiro dos poderosos, mais conhecidos como banqueiros, empresários, políticos, executivos, vulgarmente reconhecidos como manda-chuvas, big-boss, chefes etc. Usado em torno de uma das mais frágeis regiões do corpo humano, ele a reforça de uma aura protetora que mantém ameaças à distância segura. O efeito é uma inibição que afeta agentes da lei e da ordem, que não ousam tocá-lo. O protegido, que tem elevada confiança na sua capacidade defensiva, apenas tem o cuidado de utilizar um desses indispensáveis órios por ocasião, com trocas oportunas para garantir sua eficácia durante reuniões nas altas esferas, expedientes decisivos, eventos públicos, ambientes festivos. Nem ao WC vai sem ele. É tão importante que você nunca viu um se demorar na cadeia. Ele é o colarinho branco, o defensor dos fortes e opressores.


Se a descrição impressiona, imagine o próprio.


A lavagem de dinheiro deve ser feita
de colarinho branco.


A alvura do papel será sempre determinada
pelo contraste com a aquarela ou o guache.


Os gatos brancos também são obrigados
a empardecerem à noite.


A gema não pode conter albumina.


O disco de Newton não deve ter nenhum
preconceito de cor.


O filtro solar e a energia solar precisam
respeitar um ao outro.


Os alvos claros e os escuros serão alvejados
da mesma maneira.


Os ursos pardos, pretos e marrons têm
que viver longe do Ártico.


O alvejante e o quarador estão proibidos
de se envolverem ao luar.


O albinismo não pode escolher etnia
para se manifestar.


Etc.


O país tem jeito. Mas não desse jeito.


Há anos os hospícios foram extintos no país.
Olhando ao redor, vê-se que não foi por falta de malucos.


Enquanto houver bancos como o Opportunity,
o oportunismo vai continuar dominando o país.


A estabilidade democrática no país é indiscutível:
de quatro em quatro se renova a picaretagem governamental.


Neste país, é injusto comparar a Morte com os Impostos.
Ela, pelo menos, vem só uma vez.


O bafômetro e as multas elevadas já afetaram a vida nacional:
de repente, que país sóbrio!

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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