Indagou o netinho: -Vô, o que quer dizer "encher morcilha"? Respondeu o vovô: - Eis uma boa pergunta, guri. Aliás, tu já estás mesmo na idade de tomar conhecimento dos grandes fatos da vida, entre os quais o de encher morcilha não pode, em hipótese alguma, ficar de fora. Mesmo porquê, qualquer um sabe, morcilha fica é dentro da tripa que a envolve, daí o chiste. Bem, encher morcilha, a expressão revela, assim, logo à primeira audição, muita importância (pois é expressa como morcilha e não como morcela). Tanto é que nem existe a expressão oposta, esvaziar morcilha. Mas tu precisas saber muito, muito, muito mais sobre a encheção de morcilha e eu me empenharei ao máximo, aqui e agora. Sim, sem fugir das responsabilidades ancestrais, de ar o testemunho ao vivo das nossas tradições regionais e costumes culinários. Afinal, sendo teu avô, cabe a mim, e não a estranhos, te orientar nesta senda de descobertas. Vamos adiante. O significado de encher morcilha é mais facilmente apreendido se nos dermos o trabalho de interpretar os seus elementos componentes. Encher, por exemplo, tu sabes o que é. Tua inteligência me desobriga de te avivar a lembrança, claro. Encher, além de verbo bastante abastecedor e apesar de ser da segunda declinação se conjuga com o mesmo orgulho dos verbos da primeira, é uma palavra com uma influente carga de símbolos. É só tu mesmo imaginar alguns aí, nessa cabecinha esperta. Já morcilha, qualquer gaúcho tem na memória, de tão óbvia que é. A culinária regional, essa que vai de região a região, tem muito a ver com a morcilha. Senão nem haveria mais enchedores de morcilha. O que afetaria, inclusive, a mão de obra campeira. Encher morcilha impede o desemprego na atual conjuntura. Porque, já deves ter ouvido falar, a produção da morcilha anda prejudicada pelo que consta nos alarmes médicos: ela tem umas pendengas aí com a saúde pública por causa de um tal de colesterol, que antes nem deixava pegada nos bigodes engraxados. Pois é. Na união desses dois termos, encher e morcilha, conseguimos um novo sentido, tão amplo quanto abrangente, que se espalha quanto mais se pensa neles. Do ponto de vista semântico, encher morcilha diz tudo. Sob o aspecto histórico, encher morcilha mostra valor insuperável. Encher morcilha é parte inseparável das tradições pampeanas, da cultura que se transmite de geração em geração. Alimenta o saber dos mais jovens com o farnel de conhecimento dos mais velhos, e forma esse imenso e sólido substrato que preserva a nossa essência gaúcha. Entendeu, guri? Agora vai brincar lá fora e deixa o vovô ler o jornal, tá? (Para o Gabriel Fraga da Fonseca)
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Heróis de outrora no heroísmo de agora. O sujeito que fica horas e horas na fila do instituto de identificação e não consegue de jeito nenhum a sua carteira e no final do dia ainda acaba preso por não portar documentos - eis um herói anônimo. O relojoeiro que não tem mais trabalho como antes e tenta sobreviver com a ridícula e mal paga tarefa de trocar as pilhas desses relógios digitais que tomaram o pulso de todos - eis um herói do nosso tempo. O chefe de família que sustenta seus filhos com tantos biscates nesses dias desemprego globalizado e que não tem um minuto sequer para melhorar a sua imagem de homem incapaz de grandes proezas na vida a não ser ir levando - eis um pai-herói. O funcionário de uma pequena gráfica, encarregado de imprimir aqueles antigos calendários de parede, tipo folhinha de arrancar uma a uma, vendo que o mercado não tem mais consumidores pra isso e preocupado com o seu amanhã profissional - eis um herói do dia a dia. O alcagüete que se arrisca pra denunciar seus vizinhos de morro e de vida miserável, devidamente fichados na delegacia, em troca de uma medalha ou um certificado por serviços prestados à polícia mais corrupta da cidade - eis um herói sem nenhum caráter. O senhor de meia-idade, aleijado, que luta pela atualização e correção monetária de sua insignificante pensão militar, obtida defendendo a sua pátria à custa da cega obediência a superiores que nem estavam nas trincheiras - eis um herói de guerra. O cara que tenta provar a si mesmo que não é covarde e mesmo assim não tem coragem suficiente para enfrentar o olhar penetrante e ameaçador que seu próprio reflexo no espelho lhe envia - eis um herói de araque. Etc.
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Das discriminações indiscriminadas.
Não haverá mais discriminações de espécie alguma no dia em que, por exemplo: Um gago for aceito como narrador de futebol. Um negro deixar de ser sempre o primeiro suspeito. Um anão encontrar roupas em qualquer magazine. Um cego chegar a dono de agência lotérica. Um idoso conseguir vaga concorrendo com jovens. Um calvo não ter razão alguma para vestir peruca. Um paraplégico chefiar uma repartição pública. Um homossexual poder preencher formulários sem constrangimentos Um desdentado fizer comercial de dentifrício. Um paciente mental não for tratado excepcionalmente. Um humorista não usar mais preconceitos como mote. Etc.
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