Criança não é mãe. Estuprador não é pai

Por Márcia Martins

Uma das minhas propostas de 2022 era ser menos crítica, menos ácida, mais leve nos textos e escrever sobre meu comportamento correto e permanente no cuidado com a Covid-19 (que não acabou), o amor pela filha, as travessuras do Quincas Fernando (meu neto canino), a beleza da mudança das estações, os encontros com amigos e amigas ainda em locais abertos e outros temas. Só que a cada semana, neste País que parece não ter dado certo em muitos itens, mas especialmente no quesito humanidade, aparece uma punhalada mais cruel, uma notícia de desrespeito, uma morte mal explicada e demais absurdos.

O caso da menina de 11 anos, vítima de estupro, impedida de interromper a gestação por determinação de uma juíza de Santa Catarina, violando o artigo 128 do decreto lei 2828 de 1940, é de embrulhar o estômago, desacreditar de vez na humanidade e contrariar o antigo ditado de que a Justiça tarda, mas não falha. É de revoltar o áudio divulgado pelo Portal Catarinas e The Intercept Brasil mostrando a juíza constrangendo a criança a prosseguir por mais algumas semanas com a gravidez indesejada. A menina, acompanhada de sua mãe, foi induzida, de forma desumana, pela tal juíza a desistir do aborto.

Com perguntas totalmente inadequadas na audiência, indagando uma ideia de nome para o bebê, fruto de uma violência sexual, ou se o pai concordaria com a interrupção da gravidez, a juíza deixou a vítima desnorteada, desprotegida e sem respostas. A aberração da juíza foi além, uma vez que ela revitimizou a menina de 11 anos, já carregando um feto indesejado, impondo-lhe uma separação da família e a mandando para um abrigo. Sob o pretexto de afastar-lhe do local onde estava o agressor, a juíza, na realidade, pretendia evitar que o aborto legal fosse realizado.

Importante lembrar que, em caso de estupro, o aborto é permitido independente da idade gestacional. Ao descobrir a gravidez com 22 semanas, a criança foi encaminhada a um hospital de Florianópolis que se negou a interromper a gestação, justamente pelo tempo de gravidez, sem uma autorização da Justiça. Hospitais credenciados não precisam de autorização para o aborto previsto em lei, como o estupro. E neste caso, o tempo da gestação também não pode servir de empecilho. Foi aí que a juíza entrou em ação, constrangeu a criança na audiência e isolou-a em um abrigo a fim de prorrogar seu martírio.

Finalmente, na terça-feira (21), a Justiça de Santa Catarina determinou que a menina voltasse a morar com a mãe, o que deve facilitar a realização do aborto. Que história mais lamentável e dolorosa. Quanto desrespeito contido neste enredo que não é de novela. É a vida real de um ser humano. De uma menina de 11 anos. Que não desejou este destino. E como circulou no twitter toda segunda-feira (20), criança não é mãe e estuprador não é pai.

E quem irá cuidar desta menina a partir de agora? Como está a cabeça desta criança violentada sexualmente e psicologicamente? Por que uma juíza tentou, de todas as formas, inclusive as não legais, prorrogar uma gravidez indesejada? Se o hospital é referência na realização de abortos legais desde 2005 por que não seguiu, neste caso, o que determina a lei?

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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