Crescêncio

Por José Antônio Moraes de Oliveira

Ele era um homem estranho, um negro alto, todo vestido de branco, do gôrro aos sapatos. Só aparecia no inverno, sempre aos sábados, vindo do lado de baixo de nossa rua. Os guris pequenos morriam de medo e fugiam para casa, assim que ele surgia na esquina. Mas nossa mãe gostava dele, contando que se chamava Crescêncio e que era bisneto de um escravo do tempo dos Farrapos. Mas para mim, que o espreitava por detrás das vidraças, continuava sendo o assustador "Homem do Mocotó".

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Em casa, o almoço de sábado era sempre o talharim, regado com caudaloso molho à bolonhesa, que a mãe preparava com carinho e capricho. E na mesa nunca faltava um Chianti de garrafa de palhinha, que o pai comprava de véspera dos alemães do Armazém Riograndense.

Porém, em um certo inverno, o habitual talharim de sábado deu lugar ao mocotó do Crescêncio. Que no início, foi recebido com muita reserva e pouco entusiasmo. Até lembro da cara feia da irmã e da testa franzida do pai, quando a mãe chegou da cozinha carregando uma sopeira cheia até a borda com uma mistura fumegante de carne cozida, mondongo e feijão branco, salpicada com salsinha e muita pimenta vermelha. Mas a alegria que a mãe estampava no rosto desfez as caras feias, principalmente quando falou que a sobremesa seria sagu de uva com creme de leite.

E foi assim que o mocotó do Crescêncio ajudou a aquecer nossos invernos gelados em Porto Alegre. E não demorou muito, todo o quarteirão havia aderido ao mocotó dos sábados. E a gurizada não perdeu a vez, cantarolando assim que o "Homem do Mocotó" aparecia na esquina:

"Preciso de uma criança bonita,

Prá fazer mais mocotó,

Criança feia não serve,

Prá fazer bom mocotó."

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Muito tempo ou e agora me vejo diante de uma nova e charmosa delicatessen, não longe do nosso antigo bairro. Na vitrina, o letreiro em letras vermelhas anuncia:

"Hoje, sábado, tem mocotó caseiro."

São embalagens de plástico transparente, descartáveis e seladas com papel-filme. No rótulo, instruções detalhadas de como preparar a iguaria congelada no micro-ondas. 

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O inverno ainda não chegou, mas um vento gelado chega do rio Guaíba. Sigo adiante - mas por um momento, paira no ar aromas vindos da cozinha de minha mãe. Só o que falta é o Crescêncio aparecer na esquina, anunciando:

"- Olha o mocotó quentinho."

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem agens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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