Credo!

Eu e Deus temos um convênio: nenhum se mete com o outro. Creio, porém, num bocado de outras coisas: um bocado de feijão novo …




















Eu e Deus temos um convênio: nenhum se mete com o outro.

Creio, porém, num bocado de outras coisas: um bocado de feijão novo com arroz feito na hora, um bocado de pudim de laranja, um bocado de sombra e água fresca tanto quanto um bocado de lenha aquecendo a noite, um bocado de esforço pra conseguir o básico, um bocado de sono após um dia proveitoso, um bocado de sentimentos compartilhados, um bocado de boa vontade com a vida, um bocado de humor com quem não se opõe a rir.


E descreio de um monte de convenções coletivas e desconversações grupais, como partidos, seitas, times, associações, consórcios, condomínios. Tudo que faz o consenso descer à medida que a multidão aumenta. Tudo que conclama, conlui, convence, confabula, conspira, conchava, condiciona, controla.


Mas creio também na utilidade da descrença como fonte inspiradora na busca de
mais e melhores fontes inspiradoras. É a minha maneira de descrer no mais do mesmo.


E creio no recreio do livre arbítrio, assim como me determino a não descrer do acaso.


Creio em coisas positivas, inversamente às coisas impositivas. Creio em méritos mas não em medalhas; creio na ética, desde que sem patrocinador; creio em valores que não são cotados; e de qualquer modo ainda creio em bons modos.


Não creio em credos, muitíssimo menos em quaisquer crentes, imagine então em crendices.


Creio no ceticismo e tudo que tem de não enganador, tal e qual o agnosticismo e
o ateísmo me atraem por não exigirem que eu seja falso comigo mesmo nem com os outros.


Me permito até crer - não sistematicamente - no pessimismo, essa crença que funciona bem quando tudo vai mal e melhor ainda quando tudo vai bem.


Não há outro jeito de ser um humorista. Creiam.

Causas & Conseqüências.

A fábrica de ampulhetas faliu.
Não entrou areia no negócio.


A loja vende muito pouco o novo vaso sanitário.
O design não chega a ser uma bosta.


A sauna gay ficou inviável.
Um dos sócios não deu pra trás.


O aviário perdeu a lucratividade.
Não contavam com tanto ovo no fiofó das galinhas.


A sapataria parou de fazer consertos.
Nenhum cliente entra de sola.


A clínica inaugurou e logo encerrou as atividades.
O diretor não era paciente.


O açougue vive às moscas.
O açougueiro não faz mal a nenhuma delas.


O banco de sêmen entrou numa fria.
Ninguém fica pra semente.



Decálogo de coisa nenhuma.

I.
Onde impera o nada, nem imperativos há.


II.
Se nada cabe em parte alguma, o resto não tem cabimento.


III.
Nada é igual a nada, por isso nada se parece com nada.


IV.
Nada mais nulo que o nada, a não ser mais nada.


V.
Nada pode ser descrito. Basta não descrevê-lo.


VI.
Nada contém nada. Então, continente e conteúdo nada são.


VII.
Nada demais é sempre muito nada.


VIII.
Nada pesa. Pese o nada e confirme.


IX.
Nada leva a nada. Assim nada se desloca.


X.
Nada é eterno. Logo, a eternidade também é nada.

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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