Cozimento a vapor
Talento saiu de férias. Levou toda e qualquer alternativa criativa. Antes de sair, avisou: preste bem atenção, procure a inspiração em absolutamente tudo, porque …
Talento saiu de férias. Levou toda e qualquer alternativa criativa. Antes de sair, avisou: preste bem atenção, procure a inspiração em absolutamente tudo, porque quando eu voltar, quero munição. Volto atirando.
Fu Lana não quis acreditar. Ele iria abandoná-la assim? Foram tantos momentos, no mínimo, interessantes. As comemorações, especialmente, são reprise na memória. No entanto, ela leva a sério o Talento. Ele sempre diminuiu durante o verão. Derrete com o suor e dorme com a preguiça. Fu Lana, agora, tenta distrair as ideias com o ar-condicionado. Cá pra nós, tem um radarzinho meio enferrujado, em uma quase-inoperância. No entanto, lustra as antenas e curte o desafio. Vamos, sua medíocre, rosna para si mesma, movendo-se com dificuldade através da massa de vapor, rumo ao Cine Bancários, em plena caldeira central de Forno Alegre (adotou essa boa ideia).
A dica do filme tirou do jornal. O tal radarzinho molenga toma um café da manhã prolongado na falta de outros compromissos. Agnés Varda: curtas-metragens em três programas gratuitos. Nada poderia ser melhor do que ensaios cinematográficos. A cineasta sa, que hoje tem 81 anos, aparece em um dos filmes, jovem, linda, inteligente e energética, além de muito criativa, pois jamais fora abandonada pelo Talento.
Na primeira parte do programa da tarde, composto de seis trabalhos, surgem os Castelos do Vale do Loire, no outono. Apesar de parecer um documentário turístico, o texto de Agnés, também roteirista, em um francês envolvente, dá um toque irônico, seja em relação à função das construções, seja sobre os hábitos de seus moradores. Ao falar sobre os costumes, principalmente das mulheres, Agnés apresenta as modelos modernas, no estilo da época em que produziu os filmes. É uma irreverência delicada falar de reis e nobres usando a moda sa de 1957. A voz dos jardineiros é um complemento na viagem do tempo, pois lidam com plantas que se transmutam, surgem ou desaparecem, como os ciclos dos seres humanos.
Em outro trabalho, ao falar da costa azul sa, citando cada uma de suas praias, mostra o apinhamento dos visitantes, ironiza o domínio do povo inglês, o poder extremo exercido pela moda sobre a classe turística, e tem-se a nítida impressão do texto estar-se referindo ironicamente aos nossos próprios balneários de terras escuras. Com diferenças exorbitantes, é claro, porém a crítica é pertinente e disfarçada. Agnés chama a atenção para a exibição pública das pessoas que querem mostrar que são importantes. Nos hotéis, por exemplo, ser reconhecido pelos porteiros dava a medida do sucesso social. Segundo o texto, o paraíso existe, mas é privado, e está além de imponentes portões fechados.
Nos temas explicitamente contestatórios, Agnés solta o verbo e a imagem. Divertida, apresenta seu tio grego, na verdade um pintor, primo distante, e usa papel celofane para os efeitos especiais. Na linguagem, traz elementos do pop na comunicação, ao nos apresentar uma genuína comunidade jovem hipponga, moradores de casas construídas sobre as águas, em um conteúdo didático e filosófico.
Em outra reportagem, sobre a prisão de um dos líderes da comunidade negra nos Estados Unidos, mostra quem eram os Panteras Negras e sua revolta contra os "porcos" (policiais brancos). Aborda a opção de homens e mulheres pelo Black is honest and beautiful, pelas fartas cabeleiras afro e roupas maravilhosamente étnicas. Agnés nos apresenta a opção dos Panteras pelas armas e pelo revide físico, mas afirma: essa violência era uma ameaça muito menor do que aquela representada pelo establishment: as forças policiais brancas.
No terceiro curta político, sobre as mulheres nos anos 70, faz uma crítica clara e um questionamento sobre o uso e abuso da imagem feminina, transformada em objeto de propaganda e de consumo. A pressão pela busca da melhor forma física e o desrespeito pelos verdadeiros valores femininos foram contrapostos com a opção pela liberdade de escolha.
Agnés Varda é uma heroína. Porque aprisionou o Talento e nos transmite em forma original e criativa as mensagens que deveríamos ter aprendido há mais de 60 anos. Representa o que de mais seminal poderia estar acontecendo nos anos 60 e 70 e promove o reencontro com ideias que de há muito pensávamos esquecidas. Isso revigora, com certeza, e dá uma voz genuína ao ado, e claro, uma ressignificação ao dia-a-dia.
Fu Lana, satisfeita, voltou para casa reprogramada. Quer ar mais duas tardes com Agnés. E que o tal Talento fique bastante tempo fora. Assim dá tempo para uma reciclagem perfeita.