Coopítulo 90 - Duas obras respeitáveis

Por Vieira da Cunha

A dinâmica da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre era tão intensa e respeitada que nossa organização ou a ser procurada também para editar livros. Editamos quase uma dezena de livros sobre cooperativismo com alcance institucional, como a obra "Cooperação & Desenvolvimento", sobre o papel do cooperativismo no processo de desenvolvimento econômico nos países do Terceiro Mundo, escrita por Dieter W. Benecke.

Duas de nossas publicações tiveram repercussão nacional, "Querida família:", de Flávia Schilling, e "Caderno de Notícias", de Glênio Peres.

"Querida Família:" chegou ao ambiente da Coojornal através de Paulo Schilling, pai da santa-cruzense Flávia, presa aos 19 anos no Uruguai. Político, economista e jornalista, Schilling se afastou da ditadura brasileira de 64 e buscou asilo no então democrático Uruguai. Junto estavam a esposa e as quatro filhas. Assim, Flávia, então uma criança aos 11 anos, cresceu em um ambiente politicamente agitado, ao lado de uma juventude inconformada com os rumos da política, a ponto de organizar-se em movimentos de contestação. Ela integraria o Movimento de Liberação Nacional, que em 1972 ou à clandestinidade - e mergulhou nesta zona turbulenta para ser presa em seguida. Da cadeia onde estava há seis anos, enviava cartas para a família escritas no idioma espanhol, para evitar problemas ainda maiores com os censores. 

Procurava ser otimista numa vã tentativa de tranquilizar a família, mas havia momentos em que não conseguia omitir a realidade, como neste trecho de uma correspondência em abril de 1973:

 - Vamos de mal a pior aqui em Punta. Ontem foram os primeiros ataques de histeria. Sabem o que é histeria coletiva? Começa uma, continua a outra e outra, e depois ficam todas tão nervosas que só por casualidade não nos agarramos a tapas. Estão nos bombardeando com regulamentos e uma série de coisas para amarrar-nos e oprimir-nos cada vez mais. Papai: rasgaram (!) tua carta porque parece que riscar dá trabalho demais.

Quando o livro foi publicado, em novembro de 1978, Flávia estava na prisão de Punta Rieles. Seu caso repercutiu inclusive na imprensa mundial, pois sua ascendência atraiu também as atenções da imprensa alemã. Nem a Lei da Anistia promulgada no Brasil liberando o retorno dos exilados ajudou. Condenada a 10 anos no Uruguai, só foi libertada em abril de 1980.

Em "Caderno de Notícias", Glênio Peres expressou seus sentimentos em poesias e poemas, alguns expressando a amargura por ter a carreira política abortada pela ditadura ao ser cassado quando vereador em Porto Alegre. Em quatro legislaturas, de 1964 a 1977, foi vereador pelo MDB, até ser cassado com base no Ato Institucional número cinco. Mais tarde, pelo PDT, viria a ser vice-prefeito eleito na chapa de Alceu Collares. O câncer o matou em fevereiro de 88.

A apresentação do "Caderno" coube ao amigo Tarso Genro, que viria a ser prefeito de Porto Alegre e depois governador do Estado. Escreveu, registrando com precisão os tempos obscuros que se vivia então: "Ao invés de 'Caderno de Notícias', este livro poderia ter o título de 'depoimento sobre temas impuros' ou 'o que eu penso desta realidade asfixiante' ou ainda 'de como a poesia pode intervir diretamente na conjuntura sem perder sua relação com a arte'. Glênio Peres (...) consegue elevar os aspectos dramáticos da nossa existência ao nível da poesia, aberta, clara, fácil, como são todas as coisas verdadeiras".

Alguns dos poemas eram românticos, outros brincalhões, e muitos políticos e ferinos, como não seria diferente em se tratando de Glênio. Uma amostra neste trecho da homenagem dele a Frei Tito, frade católico perseguido e morto pela ditadura:

            A ti te suicidaram

           Em Lyon, França, na Europa

           Quando lembrando da comunhão

           da tortura

           e sofrendo ter falado

           o que temias dizer

           tu deste fim aos teus dias.

 

          "Os algozes se vestiam

          com paramentos de padres"

          e te deram como hóstia

          numa comunhão horrível

          um elétrico instrumento

          para queimar tua boca.

Tanto a obra de Flávia como a de Glênio podem ser encontradas no site Estante Virtual.

Autor
José Antonio Vieira da Cunha atuou e dirigiu os principais veículos de Comunicação do Estado, da extinta Folha da Manhã à Coletiva Comunicação e à agência Moove. Entre eles estão a RBS TV, o Coojornal e sua Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, da qual foi um dos fundadores e seu primeiro presidente, o Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul, a Revista Amanhã e o Correio do Povo, onde foi editor e secretário de Redação. Ainda tem duas agens importantes na área pública: foi secretário de Comunicação do governo do Estado (1987 a 1989) e presidente da TVE (1995 a 1999). Casado há 50 anos com Eliete Vieira da Cunha, é pai de Rodrigo e Bruno e tem cinco netos. E-mail para contato: [email protected]

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