Como diz Leila Diniz

Viver intensamente é você chorar, rir, sofrer, participar das coisas, achar a verdade nas coisas que faz. Encontrar em cada gesto o sentido exato …

Viver intensamente é você chorar, rir, sofrer, participar das coisas, achar a verdade nas coisas que faz. Encontrar em cada gesto o sentido exato para que se acredite nele e o sinta imensamente.


Não sou, caro internauta, a autora destas palavras de auto-ajuda perfeitamente encaixadas nos dias de hoje. Mas, no final da década de 60 do século ado (ai, que cheiro de velhice), um símbolo da liberdade feminina e da contestação, que respondia pelo apelido de Leiluska, dizia frases como essa, que podem muito bem ser usadas atualmente. Leila Diniz, nascida a 25 de março de 1945, em Niterói, no Rio de Janeiro, ficou famosa ao quebrar tabus em uma época brasileira dominada pela repressão.


E o que me motivou a escrever sobre Leila Diniz, que nem chegava a somar tanta unanimidade com o rótulo de feministas entre as mulheres? O que me incentivou a dedicar estas linhas à mulher que detestava convenções? O que me estimulou a falar da Leiluska, invejada pela sociedade machista, malvista pela direita opressora, difamada pela esquerda ultraradical e vulgar para as mulheres de sua época? Ao comparecer à sede da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) no sábado, para o tributo à memória de Leila Diniz, na data que marcou os 35 anos de sua morte, fiquei um pouco embriagada pelo espírito da atriz.


Desci os degraus cinzentos do Viaduto da Otávio Rocha, após a solenidade na ARI, com as cenas do filme "Todas as mulheres do mundo", estrelado por Leila e dirigido pelo seu primeiro marido, o cineasta Domingos Oliveira, com quem casou aos 17 anos, invadindo minha intimidade. Virei a noite de sábado curtindo uma música popular brasileira, até quase 5 da matina, e fui brindada pelo dono do bar, sem saber de nada, pela música "Coqueiro Verde", cantada pelo Erasmo Carlos, com os seguintes versos: "Como diz Leila Diniz, homem tem que ser durão, se ela não chegar agora?.vou ler o meu Pasquim".


Mas, o que realmente me impressionou, porque era muito pequena na época, foi ouvir, no evento da ARI, os principais trechos da famosa entrevista concedida pela atriz ao semanário Pasquim, em 1969, quando desfraldou o estandarte do amor livre, da liberação do corpo, do despudor verbal e da alegria. É claro que sabia da entrevista, de sua repercussão e dos asteriscos que substituíam os milhares de palavrões proferidos por Leila. Ouvir a entrevista, ainda que prejudicada pela qualidade sonora, é algo que somente acrescenta à vida de qualquer jornalista e que renova as forças de superação de qualquer mulher.


Porque na entrevista que chocou a hipocrisia do país nos anos 60, enquanto o Brasil descobria a bossa nova, a morena de curvas sinuosas e dentes de coelho desafiava, enfrentava, estimulava, divertia e contestava. Antes de tudo, escandalizava ao afirmar que "trepava de manhã, de tarde e de noite" (perdão, meus leitores mais pudicos) ou que "você pode muito bem amar uma pessoa e ir para a cama com outra", no exemplar mais vendido do Pasquim. Justamente após a publicação da tal entrevista que o Brasil teve instaurada a censura prévia à imprensa, conhecido como decreto Leila Diniz.


A mulher que ruborizou a sociedade ao exibir a sua linda barriga grávida de oito meses, na praia de Ipanema, no século ado, talvez tenha apenas antecipado a discussão sobre o papel do sexo feminino em pleno século XXI, quando se projetava a exibição dos troféus pelas conquistas. Ainda hoje, Leila, convivemos com algumas ambigüidades, como você. Sim, nós mulheres, queremos o poder. E anunciamos isso bem alto. Sem medo. Mas, não o poder cruel que assassina, mutila, ignora, aprisiona, empobrece, entristece e nos enoja. Queremos o poder de transformar esses podres poderes.


Nos nossos ventres pontudos ou arredondados carregamos os seres masculinos ou femininos que poderão, queira Deus, um dia mudar esses poderes. Nos palavrões que falamos, sem os asteriscos, uma revolta pelo que ainda não conquistamos, pelo acúmulo de atividades, pela diferença salarial ao desempenhar as mesmas funções do sexo masculino. Mas, não somos santas. Como Leila. Podemos ser gatas ou gatunas, kengas no cio ou virgens enrustidas. Santas, sinistras, ministras, malvadas. Na voz da  música de Rita Lee, "toda mulher quer ser amada, quer ser feliz, se faz de coitada, é meio Leila Diniz".


E todas as mulheres do mundo choram seus mortos hoje, vítimas do maior acidente aéreo do país, que matou mais de 180 pessoas (no fechamento da coluna, na madrugada de quarta-feira), nos céus do Brasil cheio de podres poderes. Leila Diniz, atriz do filme "Todas as mulheres do mundo", mãe de Janaína que a sociedade brasileira conheceu na sua barriga desnuda em Ipanema, que valorizou a liberdade, o prazer sexual, a liberdade feminina e o modo irreverente de viver, morreu, tragicamente, em 1972, em um acidente aéreo, na Índia.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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