Com Flaubert na avenida
Ela entrou na livraria e pediu Flaubert. O que ele escrevia, perguntou o rapazinho que a atendeu. Ela não fazia idéia, naquele momento. Tinha …
Ela entrou na livraria e pediu Flaubert. O que ele escrevia, perguntou o rapazinho que a atendeu. Ela não fazia idéia, naquele momento. Tinha uma noção de que poderiam ser romances ou poemas.
Na verdade, tinha lido a biografia do Nélson Rodrigues, do Ruy Castro (O anjo pornográfico / Companhia das Letras) e soube que uma dentre suas muitas mulheres estava uma moça muito jovem e bonita, Heleninha. No convívio com os "irmãos íntimos" do dramaturgo e jornalista, ela sofreu uma sabatina feita pelas esposas destes intelectuais e não se saiu nada bem. Foi mais ou menos assim:
Então, você já leu Flaubert? A menina tartamudeou que não (não é incrível esse Ruy Castro?). Mas com certeza já leu Baudelaire? Não. Então você não contemplou as termas de Calacara e nunca provou escargot!
À mesma conclusão horripilante a que chegaram as elegantes amigas de Nélson, Fu Lana chegou a respeito de si mesma. Será que um dia li Flaubert? Decidida, vencida por sua péssima memória, e uma cara-de-pau pior ainda, ingressou na livraria e disse o nome do francês, em um tom baixo o suficiente para não ser ouvida. Alguém poderia achá-la arrogante, pedindo por uma obra tão clássica. Porém, foi como comprar camisinhas (quando elas não estavam dispostas no balcão). O cara perguntou em voz alta: temos alguma coisa de Flaubert? Uma voz preguiçosa vinda das estantes no fundo da loja perguntou de volta: foi o mesmo que escreveu Flores do Mal? Meu Deus! Até ela sabia que tinha sido Baudelaire, mas não disse nada. O rapazinho murmurou: mas eu já ouvi falar dele. A Internet está fora do ar e eu? Fu Lana deixou pra lá. Voltaria em uma outra hora.
Saiu dali, com vergonha de pertencer a uma geração tão inculta e tão nem aí. Afinal, ela já estava na idade de conhecer os clássicos. Aliás, já estava ando da hora de conseguir enxergar as letrinhas. E ainda tinha de contribuir para a melhoria da espécie.
Entrou em um sebo próximo e pediu, segura: tens Flaubert? O que queres dele? Putz. Que perguntinha. Qualquer coisa (nem sabia o que ele escrevia mesmo?) O rapaz foi aos romances. Ahá! Ela suspeitava. Humm, não tenho nada dele, mas logo ali na subida tem uma livraria que está se mudando e tem uma oferta na calçada por dez reais cada. Uau! Era seu momento. Fez a volta na esquina e viu o caixote de livros, destes que faziam parte da Feira do Livro, perto dos quais nunca parava para procurar porque temia não identificar o que ele tinha de bom. Capas duras, vermelhas, com detalhes dourados. Os imortais da Literatura Universal (Editora Abril). Dez reais? Deu uma olhada e leu: Madame Bovary. É este. Foi ao autor e pimba: Gustave Flaubert. Por que ela não lembrou antes? Ouvira centenas de vezes referências a ele e ao romance. O que tinha feito para perder assim o fio da memória? Muita manha e preguiça, um desperdício de tempo, isso sim.
Aproveitou e já levou um Vitor Hugo (Os trabalhadores do mar) e um Flores do Mal, de Charles Baudelaire, com o topo das páginas em dourado. Queria crescer. Estava decidida. Queria aprender, fazer com que a dureza da vida se tornasse um esfumato, e o ar de 1800 penetrasse em sua retina, levando-a para a atmosfera incerta das pinturas de Turner. Cristo. Que dureza. O pior ela sabia: não bastará esta carga carnavalesca de leitura. O problema está no receptor, e em algum defeito de fábrica. Tinha aprendido isso na faculdade de comunicação. Ou não?
Queria ter a nobreza, mas era do povo. Deveria ao menos ter vindo do povo, com as limitações de aceitar sua ignorância e adaptar-se ao seu meio. Ficar feliz com o que os mass media dariam a ela, por ser do povo. No entanto, ela estava sempre descontente. Nunca sabia o suficiente. Seria capaz de ler os livros adquiridos com fervor e, mesmo assim, eles não a tornariam uma pessoa melhor. Deveria contentar-se com suas limitações, com sua origem: uma classe média baixa daquela que não pode ser mais mediana ou medíocre. Sua mente acompanhou desde cedo o surgimento da tevê e de todos os enlatados americanos. Faz parte da geração sanduíche, que está entre os que fizeram muito e os que certamente não farão nada. Detestava estereótipos, mas foi moldada dentro dele. Seu professor de história da arte já dizia: Fu Lana é muito esforçada, sincera e batalhadora, mas é uma pessoa simples. Ele queria dizer que ela vinha de um berço árido, onde, por mais que plantássemos, a terra não fertilizaria. Onde não tocava a ópera nem havia o cinema. Onde os livros eram chatos e a pintura era coisa de malucos. Por outro lado, detestava os destinos fatídicos e atávicos. Iria mudar o seu caminho, nem que fosse tarde demais. Nem que ficasse velha tentando, ou virasse uma chata de galochas. E assim preparada, entrou nas 50 horas que durariam as festividades do carnaval dando uma garibadinha na consciência. Ficaria com uma enorme dor nas costas de tanto ler, mas o bem da humanidade valeria este ínfimo sacrifício.