Coisas de burguês
Fiquei ali parada. Assim pensando, o que este povo todo que se engarrafa, entre bicicletas no reboque, cachorros, amigo do primo, amigo do amigo …
Fiquei ali parada. Assim pensando, o que este povo todo que se engarrafa, entre bicicletas no reboque, cachorros, amigo do primo, amigo do amigo do ex-cunhado, na freeway todo o santo final de semana de janeiro e fevereiro está desejando neste trajeto. Férias? Lazer? Descanso? Ouvir as mesmas conversas de sempre? Tomar a cerveja depois do almoço e roncar até não mais poder? Disputar um espaço na beira da praia com muito custo e depois, em seguida, encostar uma família tri-mal educada, daquelas que sacodem a toalha, que o cão faz cocozinho e eles não usam saco plástico?
O quadro do horror descrito acima só pode ser comparado ao cult turismo em Porto Seguro ou Porto de Galinhas, justamente em alta temporada. O que deveriam ser uns dias de descanso (sim, porque alguns mortais têm férias, 30 dias e ainda corridas, nos meses mais procurados), transforma-se naquela inável pergunta: "Quando eu vou ter férias para descansar das férias?". Caro leitor, me ouça, não é tão terrível. Se você pertencer a uma destas profissões sacrificadas, que trabalha no Natal, Ano Novo, Carnaval, Páscoa, como um jornalista, por exemplo, dificilmente você enfrentará este tormento.
Resultado de uma licença-saúde, não terei férias, mas havia conseguido um período nesse conturbado veraneio gaúcho. Definitivamente, em função dos preços exorbitantes, férias no litoral do Rio Grande do Sul tornaram-se um programa de burguês. Aliás, tive um grande secretário que assessorei por alguns anos que sempre falava quando eu avisava que iria almoçar: "Comer é coisa de burguês". Na sua sabedoria, ele antevia o ano de 2007. Mas, férias para quem não tem casa na praia (símbolo de status da burguesia), em função do descomo do salário e dos preços, virou um novo e cobiçado objeto de consumo.
Ai, que mico. Ninguém vai me zoar depois só porque serei sincera. Se não fosse o problema de saúde que me afastou das rotinas por um tempo, eu iria ar uns 10 dias em Porto Seguro com a Gabriela Martins Trezzi. Ficaria sujeita à espera nas filas dos aeroportos, à desinformação total, e, ainda, chegaria em Porto Seguro para fazer todos aqueles eios de escuna, até Trancoso e outras praias famosas. E de quebra, Gabriela poderia ter aulas de funk, que ela adora. Como já cantou meu poeta Cazuza: "A burguesia fede, a burguesia quer ficar rica, enquanto houver burguesia, não vai haver poesia".
Será que virei burguesa e nem irei mais reparar na dor dos vendedores de balas nas esquinas e nem dos malabares nos sinais? Dê-me piedade, senhor, piedade, não permita que eu feche os olhos para a infelicidade dos outros. Não deixe que pense só no material e nos prazeres. Não me tire jamais a indignação ou o simples ato de indignar-se.
Confesso, tem coisa pior que tudo isso narrado acima. As tais férias divididas de filhos de pais separados. Se os dois forem jornalistas então, o embrulho complica, porque é quase que impossível tirar 30 dias corridos e, principalmente, nos meses em que todos querem sair. E tem os seus direitos. Com ou sem filhos. A minha Gabriela Martins Trezzi está em Santa Catarina com o pai, curtindo 15 dias, que foi o que o progenitor conseguiu. O restante? Bem, daí a mãe que detém a guarda e pariu Matheus, que resolva. Até recomeçarem as aulas no colégio, usufruirei de sua companhia em tempo integral.
No domingo, a pequena aborrescente me telefona. Pra avisar que não devo me preocupar. Ela ainda não chegou na praia porque está há duas horas presa em um congestionamento em Palhoça. Pergunto se ela está irritada com o imprevisto. "Nada, mãe. Tou ouvindo música, comendo batata e o pai vai achar um atalho prá fugir disso". E já fico lacrimejando de ouvir a sua voz doce ao telefone. Será que ter sentimento é coisa de burguês?