Coisa de brasileiro
Minha geração se criou ouvindo expressões como "só no Brasil acontecem certas coisas" ou "só podia ser coisa de brasileiro". Somos, de fato, uma …
Minha geração se criou ouvindo expressões como "só no Brasil acontecem certas coisas" ou "só podia ser coisa de brasileiro". Somos, de fato, uma mistura única, para o bem e para o mal. Na maioria das vezes, trata-se de puro mito, estimulado pela tendência nacional à baixa auto-estima e à autodepreciação. Tom Jobim alertou para a inveja do brasileiro em relação ao compatriota de sucesso. Ainda hoje, parece vetado a brasileiros galgar postos de primeiro mundo ou atingir êxito global. As críticas à escolha de Henrique Meirelles para a presidência do Banco Central, na alvorada do governo Lula, não se referiam apenas ao fato de ele ser um neoliberal -o que supostamente Lula não é -, mas também ao currículo recente de Meirelles, que estava "a serviço do capital internacional" - o mesmo havia sido dito de Armínio Fraga, no governo FH.
Esta é a forma ideologizada e ressentida de informar que Meirelles era o presidente mundial do BankBoston. A centenária instituição financeira norte-americana não teria outra razão para escolher um brasileiro para o posto, contrariando por certo seus próprios princípios, a não ser a reconhecida competência. Sem falar nas críticas ao governo por dar o cargo a um banqueiro (sic!). Quem sabe um biólogo fosse mais adequado ao Banco Central?
É preciso estabelecer a diferença entre o que é injustamente considerado "coisa de brasileiro" e o que é, de fato, coisa de brasileiro. Corrupção política, por exemplo, existe no mundo inteiro, inclusive em culturas milenares com economia de primeiro mundo, como o Japão. E, ao menos nos últimos quinze anos, desde o impeachment do presidente Fernando Collor, vários deputados e senadores tiveram o mandato cassado. A chamada "certeza da impunidade", neste caso, não é assim tão certa. A corrupção policial também não é exclusividade nossa, embora atinjamos índices que nos colocam em desonrosa posição de liderança. A falta de autoridade das autoridades, com o perdão pela repetição, leva ao paroxismo o medo nas grandes cidades brasileiras. No Rio, há muito não se sabe quem manda. Ou pior, sabe-se. Os traficantes legislam, fiscalizam e executam, literalmente. A fome, a exclusão social, a falta de cidadania provocada por uma das distribuições de renda mais injustas do mundo são coisa de brasileiro, sim. O Vietnã é um país pobre. O Brasil é um país rico cheio de pobres.
Mas é preciso olhar também o Brasil de primeiro mundo. Não somos bons apenas no futebol. Tampouco devemos ser eternamente reverenciados somente pelas belas paisagens, pela ausência de catástrofes naturais como vulcões, furacões ou terremotos, ou pela diversidade cultural, ou pelas novelas da TV Globo, ou ainda pela exuberância física das mulheres e seu comportamento, digamos, liberal. Estar entre os mais avançados do mundo em pesquisa genética também é coisa de brasileiro, assim como executar um programa modelo no controle e tratamento da Aids ou exibir impressionantes números de produção de alimentos e desenvolver tecnologia de ponta em várias áreas.
Longe de ignorar nossos imensos problemas sociais, precisamos entender que assumir a posição de "o Brasil é assim mesmo, sabe como é" em nada ajudará a mudá-lo. Ao contrário, só levará a uma acomodação fatal. As mazelas são muitas, parecem mesmo insolúveis por gerações, mas, se deixarmos de lado o mito do brasileiro sem solução, começaremos a resolvê-las. Parte da mídia, diga-se, tem se esforçado em mostrar os dois lados, em exibir também o Brasil que dá certo. A outra parte, bem, a outra parte é coisa de brasileiro.
DITO PELO NÃO DITO
"Certas pessoas são muito modestas. Com toda razão."
José Onofre
CINCO ARROBAS

Conforme o nome esclarece, trata-se de um site com análises sobre o desempenho, a ética, a isenção (ou a falta de) da imprensa. Aborda preferencialmente temas nacionais, mas inclui as principais discussões sobre a mídia no mundo. Dirigido por Alberto Dines, tem a presença constante de articulistas renomados e com intimidade no assunto. É um excelente fórum de debates acerca de tão aleatória profissão.
coletiva.diariodoriogrande.com
*Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha e Dona Deusa e seus arredores escandalosos e da ficção juvenil Elyakan e a Desordem dos Sete Mundos. É Diretor de Redação da revista Forbes Brasil e escreve semanalmente neste site.
[email protected]