Chega de hipocrisia

Não tem como não falar na morte do menino João Hélio, de seis anos, no Rio de Janeiro, arrastado por quilômetros, preso ao cinto …

Não tem como não falar na morte do menino João Hélio, de seis anos, no Rio de Janeiro, arrastado por quilômetros, preso ao cinto de segurança do carro de sua mãe, assaltada esta semana quando saía - ironicamente - de um centro espírita. Digo ironicamente porque, sendo eu espírita desde criancinha, imagino que a família estivesse saindo da casa depois de receber um e para se harmonizar. Como milhões de pessoas fazem diariamente no Brasil, aliás. Ironicamente, ainda, porque existe todo um trabalho intelectual garantindo que as pessoas que têm fé e acreditam em "alguma coisa" além do material vivem mais e melhor, enfrentam melhor doenças e traumas etc etc etc. Ironicamente, também, porque não vai faltar espírita ou simpatizante ou ainda equivocados de plantão que vão dizer que a morte do garoto foi queima de carma, que provavelmente ele estava resgatando alguma ação negativa de outra vida.


Eu já me antecipo porque não consigo nem estar indignada. Já ei desta fase. Estou, declaro aqui com toda a honestidade, odiada, com um ódio infinito do que aconteceu. Duvido que um pai, uma mãe, um irmão, por mais "civilizado" e zen que seja, neste momento tenha a cara-de-pau de dizer que é contra a pena de morte. Vamos deixar de ser hipócritas e parar de dizer que os responsáveis pelo que aconteceu somos nós, todos os brasileiros. Uma ova. Os responsáveis têm nome e sobrenome. Um deles, menor de idade, caso seja preso (e já nem acredito mais nisso), em três anos pode estar fora da cadeia. Esta é a nossa justiça. Os direitos humanos levados ao extremo da indecência, da falta de senso, da maldita hipocrisia.


Li hoje um artigo que tenta fazer uma reflexão sobre a responsabilidade pelo crime. Ah, é a sociedade. Somos nós. Eu fora. Nasci e cresci em família pobre. Estudei em colégio público a vida inteira, universidade incluída. Levei boas palmadas de minha mãe quando saía do sério e aprendi a respeitar não só a autoridade paterna mas a vida alheia, os direitos dos outros. Muita gente como eu vem da pobreza, da falta de oportunidade, do preconceito da "zelite" (não essa que o Lula inventou, mas a real, que convivia comigo nos bancos de escola e de universidade). Nem por isso me atirei em droga, roubo, estelionato ou qualquer tipo de crime. Ao contrário. Levei a educação do seu Waldemar e da Dona Luci para meus filhos, que foram criados bem longe da sedução das esquinas no final de tarde. Não me arrependo. Por isso, vamos parar com a história de que crime é destino de pobre, de falta de educação formal.


O pai de um dos malditos que mataram o menino carioca diz que perdeu o controle sobre o filho, a quem tentou ensinar corretamente. Não é o único. A classe média está cheia de canalhas que tiveram tudo do bom e do melhor e agora usam os apartamentos ganhos da família para traficar e fazer novos viciados que, por sua vez, são canalhas igualmente, porque aceitam o jogo. Duvido que alguém, no fundo de sua consciência, não tenha pensado: tem que acabar com estes caras que mataram o garoto da mesma forma que eles fizeram. Esta bondade aparente que mostramos é falsa. Se não for, estamos perdidos. Se aceitarmos o perdão para este tipo de crime, é melhor nos assumirmos como feras. Tem de haver punição. Não dá para jogar nas costas de quem trabalha honestamente, aje dentro da lei e está vulnerável a estes cafajestes a responsabilidade pelo que aconteceu.


Eu não aceito. Sei que milhões pensam como eu. Talvez nunca itam, nem para si mesmos, por medo de se sentirem não-civilizados. Não sou desta banda podre. Não me misturo. E acho que a banda a qual pertenço tem de ficar de olho muito aberto, para não se deixar levar por pensatas que tentam distribuir o peso da culpa entre os que nada têm a ver com estas baixezas.


Nós, que temos a responsabilidade de falar publicamente, integrantes deste glamouroso mundo da comunicação, devemos redobrar o cuidado com nossas palavras. Chega de balela, de gente dizendo que vender cerveja em posto de gasolina para menores é normal. O leitor, o ouvinte, estes têm o direito de se manifestar. Que se manifestem.

Autor

Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maristela Bairros já atuou como redatora, repórter, editora e crítica de teatro nos principais diários de Porto Alegre, colaboradora de revistas do Centro do País e foi produtora e apresentadora nas rádios Gaúcha, Guaíba AM, Guaíba FM e Rádio da Universidade, assessora de imprensa da Secretaria de Estado da Cultura e da Fundação Cultural Piratini. É autora de dois livros: Paris para Quem Não Fala Francês e Chutando o Balde, o Livro dos Desaforos, ambos editados pela Artes & Ofícios.

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