Cegos e congelados

Ela entrou no Museu de Artes para fugir da chuva fina. Perdeu a hora da sessão de cinema na sala do Santander. Confundiu a …

Ela entrou no Museu de Artes para fugir da chuva fina. Perdeu a hora da sessão de cinema na sala do Santander. Confundiu a infinidade de datas e programações que entram e saem de cartaz. Misturou os horários e as tabelas. Procurou Hércules 56. Tinha entrado no início do mês e só volta na última semana. Que massada. Eram quase 17h de um quase outono-inverno escuro, frio e molhado. A luz quentinha e as escadas forradas de carpete vermelho a fizeram procurar abrigo, conforto e explicação para as coisas inexplicáveis.


Porém, era época de entressafra. Acabara a montagem da Zorávia Bettiol e a sala principal estava fechada. No , as suas alas favoritas chamavam por ela. As Salas Negras. Fu Lana a-do-ra-va aquela sensação dramática daquelas paredes pretas. Ali, já fugira de aracnídeos de borracha que inundavam o ambiente. Já escapara de uma mórbida exposição de máscaras mortuárias. O medo não tem nada de irreal. Já no início do corredor, conseguia avistar os vultos dos Miseráveis, de Arminda Lopes. Um arrepio ouriçava os cabelinhos da nuca.


A artista dublou o bronze e o maquiou de barro. Uma riquíssima, durável e cara substância transformada, à primeira vista, em frágil, temporária e barata argila. Ela trouxe os miseráveis diretamente da rua, congelou-os e os tornou denúncia, não sem antes amplificar suas mãos, acostumadas à lida urbana de mendigar, lutar e sofrer pela sobrevivência, e tornar enormes os pés, até mesmo os de um recém-nascido, tal como as únicas bases que os sustentarão nesse mundo louco.


A arte sempre serviu de alerta aos nossos neurônios embotados pelo cotidiano. Fu Lana sempre a procura quando precisa acordar e aprender com aquele discurso mudo que repercute na história da humanidade. Foi assim com a Guernica, de Picasso, ou com O grito, de E. Munch. A denúncia e o registro do que acontece com o homem sempre têm sua manifestação na cultura.


Alguém já disse aos miseráveis de Porto Alegre que as visitas a museus são gratuitas? Fu Lana quis atravessar a rua e trazer alguns deles para enxergarem a si mesmos imobilizados em bronze, estanques e gelados, para checar o estupor de suas faces e compará-lo com o seu próprio espanto. Seria perfeito. Ou tudo iria descambar para o clichê das piadinhas infames. Sobre a nudez dos retratados ou pela desaforada aversão ao comportamento burguês. Seja como for, eles veriam as próprias figuras, sobre as quais amos por cima e evitamos a qualquer custo. Os olhos vazados das esculturas confirmavam: não há nenhuma esperança de que sejam vistos. Não além das salas daquele Museu. Por aqueles buracos devem escapar suas almas.


Por outro lado, tocante, cálida e ingênua é a ilusão de Arminda Lopes de que nos conscientizaremos a partir da fruição de suas obras. Esse é um desejo que chega a ser romântico, quando não assistencialista. Lembra um pouco aqueles chás de senhoras abastadas em nome de uma ou outra instituição beneficente. Não que não seja válido e humanitário, mas a ação necessária para acabar com a pobreza certamente é maior do que isso.


Na obra de Arminda, há meninos e meninas de rua e, especialmente, mulheres. Sensuais sem o saber, as pobres se deixam ver, semidespidas ou nuas, sem pudor. A maternidade, na figura imponente de dois seres que apesar de recém-separados mais se parecem com dois estranhos. As mamães quentinhas e aconchegadas, acostumadas ao carinho, não reconhecerão aquele ser, que, encolhido junto ao chão frio, já ostenta um olhar adulto. Já sabe que não há saída e que há uma tensa gravidade naquele ato de vida transformado em uma cena cruel.


É obrigatória a visita ao Museu de Artes Ado Malagoli. Às Salas Negras. E pode ser para escapar da chuva fina, para matar um tempo, para esticar as pernas. Certamente será válida também para ver, de pertinho, aqueles fantasmas que andam pelas ruas. Que nos atormentam e nos enchem de culpa. E para apreciar a obra que mereceu a medalha Verneil, da Sociedade Acadêmica de Artes, Ciências e Letras de Paris, cidade-luz onde esteve exposta Miseráveis - a estética da dor.

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