Caso Kiss na Era da Pós-Verdade*
Por Fernando Puhlmann

"Acredito, logo estou certo."
Eduardo Marks
Hoje em dia tudo é verificável e, portanto, não é fácil mentir publicamente. Mas essa dificuldade pode ser superada com dois elementos básicos: a insistência na afirmação falsa, apesar dos desmentidos confiáveis; e a desqualificação de quem a contradiz.
A era da Pós - Verdade, que vivemos hoje, tem um forte impacto na sociedade atual. Para se criar o cenário favorável a causa que eu desejo, eu não preciso mentir, apenas contar uma parte da verdade e omitir outra, silenciando quando contestado com dados e informações reais e atacando com a " minha" parte da verdade quem se atreve a me confrontar, mandando um recado, muitas vezes duro, a outros que se atreverem a levantar-se contra o que prego.
No caso da Boate Kiss, a maior tragédia deste estado e uma das maiores do país, também tivemos casos de Pós-Verdade, pelo menos no meu entender.
Os réus contribuíram de alguma forma para as mortes? Sim. Eles poderiam evitar que a tragédia acontecesse? Sim. Eles queriam que as mortes acontecessem? Não. Eles não se importavam de correr o risco que as mortes acontecessem? Eles nem imaginavam que as mortes pudessem acontecer. E é aí, justamente nesse ponto que temos uma construção de narrativas que transformam a verdade dos fatos, em pós verdade.
Meu papel aqui neste artigo não é defender nem acusar ninguém, embora eu tenha um lado claro e sempre tenha deixado isso muito transparente nas minhas redes sociais e para todos que me questionavam a respeito dos fatos, o meu papel aqui é tentar mostrar como uma narrativa sensacionalista pode trazer mais vítimas para uma tragédia que já tinha mortos de sobra.
Quando o fato acontece no dia 27 de janeiro de 2013, a grande imprensa nacional cobre o evento, como não podia ser diferente, e fica muito claro que encontrar culpados construiria uma narrativa ideal para as matérias de grande repercussão, pois no drama da vida real ninguém quer que 242 jovens tenham morrido por uma sequência de erros infelizes, mas sim pela mão horrenda de assassinos frios e ambiciosos, que só visam lucro e desdenham da vida humana.
A partir daí temos várias lendas urbanas que são criadas, desde coisas absurdas como os proprietários da casa não permitirem que as pessoas saiam sem pagar, mesmo com todo mundo sabendo do incêndio, até que havia um pacto com o Diabo e que o incêndio era um sacrifício coletivo.
Por mais absurdo que tudo isso pareça, as pessoas consomem esse conteúdo, e isso vai gerando a construção de uma narrativa que leva o inconsciente popular a cada vez mais odiar os envolvidos.
Óbvio que as lendas criadas por blogs e/ou fofoca, não se sustentam, porém, algumas narrativas se mantêm e aí surge a Pós-Verdade.
Quando veículos nacionais e regionais de grande monta começam a mostrar cenas de festas dentro da casa com baldes tendo velas acesas e falam do perigo desse tipo de atuação, eles não complementam dizendo que todas as casas do Brasil e do mundo também fazem isso e que acidentes com velas desse tipo são raríssimos.
Quando eles mostram fotos das filas em frente à casa na noite da tragédia ou em noites anteriores, eles não explicam que se chegarem 400 pessoas ao mesmo tempo e a casa tiver apenas 3 check -ins, se formarão filas imensas independente da casa comportar confortavelmente 600 ou 700 pessoas e que, portanto, isso não pode ser usado como um balizador de superlotação.
Quando surgem fotos da casa com corredores entre as portas, eles não explicam que isso serve para abafar o som e que abafar o som é uma necessidade exigida por lei para a boate poder permanecer aberta.
Quando assistimos a imagens da casa com vários caixas, eles não explicam que aquilo ali não é sinal de ganância e sim uma forma de poder evacuar 400 pessoas de forma mais rápida em noites normais, uma vez que o momento que mais dá confronto físico é na hora que todo mundo resolve ir embora junto e ninguém quer esperar pacientemente em uma fila.
Quando surge a informação de que existia um documento de que a casa só poderia receber algo próximo a 700 pessoas ao mesmo tempo e tinham lá perto de 800, ninguém complementa que esse número só foi noticiado a todos, e inclusive aos proprietários da casa, após o incidente.
E isso é a Pós-Verdade, é a construção da narrativa a partir da parte que me interessa, da verdade que me serve, e da ocultação da parte que não serve para a história que quero defender.
Sim, o sensacionalismo que vende sobrepujou a verdade total dos fatos.
Os réus mereciam as penas? Eu tenho a minha opinião e ela é pública como aparece em um tuíte meu com mais de 7000 mil interações, mas esse texto não é para isso, é apenas para mostrar como a força da narrativa pode condenar ou absolver qualquer um em um país como o Brasil.
Aos pais, familiares e amigos que perderam os seus entes queridos, deixo o meu mais forte abraço e o meu mais profundo respeito, vocês podem tudo, desejar tudo, querer tudo e acreditar em tudo, pois depois dessa dor lancinante que vocês sofrem dia a dia, ninguém tem direito de julgá-los.
Agora a vocês da imprensa, vocês que contaram apenas a parte que lhes servia, e aqui não coloco todos os jornalistas no mesmo saco, há vários que não compactuam para isso, deixo apenas um pedido de reflexão, foi realmente para contar apenas uma parte da verdade que vocês estudaram tanto e fizeram o juramento na formatura de vocês?
Ao MP/RS deixo o meu repúdio, afinal, como disse Allan Kardec no Livro dos Espíritos: "Tanto mais culpado é o homem, quanto melhor sabe o que faz"
Aos réus deixo o meu abraço.
Aos advogados de defesa o meu obrigado, não existe democracia sem julgamento justo, não existe julgamento justo sem defesa.
A todos nós deixo um pedido, empatia é uma palavra linda, mas que só tem serventia quando aplicamos a todos, independentemente do lado que se encontram.
*Crônica publicada no dia 15 de dezembro de 2021, neste mesmo portal, uma semana após o primeiro julgamento da Kiss. Solicitei que ela fosse novamente publicada na minha coluna pois a considero tão necessária hoje quanto na época da primeira publicação.