Cândidas recordações de uma garotinha

Sentada em uma cadeira de balanço no pátio da casa localizada na rua Felicíssimo de Azevedo, em Porto Alegre, Teresinha, nome comprido para uma …

Sentada em uma cadeira de balanço no pátio da casa localizada na rua Felicíssimo de Azevedo, em Porto Alegre, Teresinha, nome comprido para uma menina de quatro anos, tentava se recuperar de uma pneumonia tomando bastante sol, conforme recomendara o médico. Ela e mãe, Maria Emília, tinham motivos de sobra para se preocupar e rezar dia e noite para que aquela doença maldita fosse embora de vez. Poucos anos antes, a irmã mais nova havia sucumbido à moléstia, e não ara dos seis meses de vida. Teresinha, já então chamada intimamente de Santa devido ao comportamento impecável, não sabia exatamente o que pensava sobre o apelido, mas era menor e mais fácil de pronunciar do que o longo Teresinha Edis.

Nos incontáveis dias ados ao sol naquele pátio lajeado tinha a lhe fazer companhia apenas um elefantinho de pelúcia marrom, além de duas vizinhas mais velhas, velhas mesmo, pensava, pois já deviam ter uns dezoito anos. Lourdes, a favorita, e a irmã, de quem não gravou o nome, debruçavam-se sobre o muro alto e conversavam com ela durante o que pareciam longas horas. Corria o ano de 1943. O mundo estava em guerra e o Brasil vivia sob a ditadura Vargas, coisas das quais só viria a tomar conhecimento muitos tempo depois. Naquele ano chegava a Porto Alegre, vindo de Bagé, e contando apenas dezesseis anos, Cândido Norberto Silva Santos, que em breve se tornaria ídolo da Era do Rádio.

Teresinha, ou Santa, que era menor e mais fácil de pronunciar, recuperou-se plenamente e levava uma vida normal. Anos depois, olhava vitrinas com a mãe e a avó, quando se deparou diante de uma promoção tentadora: na compra de uma bela bolsinha de verniz roxa, que estava na última moda, ganharia de brinde uma foto autografada de Francisco Carlos, cantor carioca projetado para o sucesso em 1949, que participou de vários fillmes e encantou platéias em vários gêneros musicais. A mãe não tinha dinheiro, mas a avó, Tolentina, a quem chamava de Tutua, percebeu o brilho no olhar da neta e bancou a compra. A foto de Francisco Carlos, embora estimada, acabaria valendo para ela muito menos do que outra, que ganharia durante a visita a um programa com pequeno auditório na Rádio Difusora. Além de poder sortear as cartas de ouvintes que receberiam prêmios, saiu do estúdio com a foto autografada do maior ídolo, Cândido Norberto, que rapidamente e ainda muito jovem, tornara-se locutor, animador, rádio-ator e coordenador de elenco, entre tantas outras funções que haveria de desempenhar com competência no rádio pelas cinco décadas seguintes.

Desta vez não fora preciso comprar uma bolsinha de verniz, mas a mãe teve de providenciar tesoura, cola e um caderno para que a filha colasse as pencas de fotos de Cândido retiradas de jornais, revistas, panfletos e tudo que fosse possível conseguir. O acervo aumentava enquanto ela freqüentava assiduamente o programa. Do bairro Floresta, onde morava - agora haviam trocado a Felicíssimo de Azevedo pela Marcelo Gama - seguiam, ela e mãe, de bonde até o centro, onde desciam na Praça XV e tomavam caldo de cana gelado, ou uma Grapette acompanhada de um sanduíche antes de seguirem para a rádio.

Certa vez foram a pé até o Cine Orpheu, que depois se tornaria Astor, e hoje é loja para gordos, na esquina da Benjamin Constant com a Cristóvão Colombo. Seria um programa de rádio com auditório ao vivo ou um debate do político iniciante? Fosse o que fosse, a menina invariavelmente de trancinhas e laço de fita foi chamada por ele ao microfone para compor a mesa na qual só havia homens engravatados. Uma honra inesquecível que se repetiria em pequenas doses. Quando Cândido com certeza já era político, a garota e a mãe percorriam a pé a Rua da Praia e subiam a Ladeira. Muitas vezes o encontravam no caminho, ele parava o carro e oferecia carona e depois um cafezinho no bar da Assembléia. A garota nem gostava de café, mas bebia como se fosse sua bebida predileta, empavonada por estar ao lado do ídolo.

Os anos avançaram e muitas horas foram adas ao lado do rádio à espera de Moonlight Serenade, música de Glenn Miller com letra de Kurt Elling composta em 1941, tocada pela orquestra de Miller, indicativo de que estava entrando no ar Pensando em Voz Alta, o mais clássico programa radiofônico de Cândido. A menina, sem qualquer intereferência do mito, chegou a participar de uma radionovela. Depois cantou no programa do Vovô Guerra e no de Ari Rêgo, o Clube do Guri, e no Programa Maurício Sobrinho, no Cine Castelo, na mesma geração de Elis Regina. Parou lá pelos 16, quando ficou noiva, voltou depois, quando já tinha um filho pequeno, e chegou a concorrer ao título de Rainha do Rádio.

Em 1980, 37 anos depois daquelas tardes ao sol no pátio lajeado, a garota entrou na sala da presidência da TVE-RS, então ocupada por Cândido. adas tantas décadas, entregou ao ídolo o caderno repleto de recortes amarelecidos. Fazia-se acompanhar do filho, então com 20 anos, estudante de jornalismo e que logo iniciaria sua carreira em Zero Hora, com o apoio e o carinho do ídolo da mãe. Carinho que, a exemplo do que ocorrera com a menina, também se estenderia pelas décadas seguintes. Ainda hoje, neste 18 de outubro de 2004 em que ele completa 77 anos, Cândido é, além de meu pai, um dos únicos homens que me acostumei a cumprimentar com beijos.

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Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha, Dona Deusa e seus Arredores Escandalosos e da ficção juvenil Eliakan e a Desordem dos Sete Mundos.

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 Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha, Dona Deusa e seus Arredores Escandalosos e da ficção juvenil Eliakan e a Desordem dos Sete Mundos.

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