Cães e caos
Vamos pensar diferente: que, ao invés de um cachorro sarnento e doente, Guillhermo "Habacuc" Vargas tivesse colocado na Bienal de Arte costarriquenha um mendigo, …
Vamos pensar diferente: que, ao invés de um cachorro sarnento e doente, Guillhermo "Habacuc" Vargas tivesse colocado na Bienal de Arte costarriquenha um mendigo, destes que a gente a por cima, um pobre e sujo transeunte em estado terminal. Na rua, o sujeito aria por invisível, porque o problema social é sempre dos outros.
E se o sujeito estivesse tão mal a ponto de não reclamar que o deixassem morrer à míngua, e fosse colocado em exposição, em um lugar "branco", como são chamados os espaços sofisticados de apreciação da arte. Para não fugir, e a fim de servir ao propósito do autor em revelar e denunciar a hipocrisia dos homens, o miserável ainda seria amarrado a uma corda bem curta, em um canto da sala. Ficaria ali, a sofrer, não recebendo alimento, urinando e defecando em público, deitado sobre seus próprios excrementos.
O mais adequado nessa situação bizarra seria responsabilizar a instituição que aceitou a obra e que deverá responder por aquela tortura a um animal. O homem vindo a morrer poderia gerar processo, por ter sido negada ajuda a um moribundo, negando-lhe atendimento dentro da instituição.
O autor, ora, estará isento total de culpa pois proposições mais estapafúrdias são feitas para provar as mais inusitadas teses, como pendurar homens vivos pela pele e outras visões nada agradáveis nem mesmo de serem citadas.
As pessoas, no entanto, poderiam ter levado alimento ao mendigo, poderiam tê-lo confortado, poderiam ao menos levar-lhe água. Mas a ordem no mundo da arte, hoje, é: não tocar, por favor.
E foi o que aconteceu com um pobre cão, que no lugar de nosso hipotético mendigo, foi amarrado a um arame de pouca medida, em um corner de um chiquérrimo salão de artes. Ali, foi deixado a morrer, sem água ou alimento. Na rua, muitos seriam os que ariam por ele, sem remorso de virar o rosto. Porém, ali, exposto como objeto de apreciação, cumpria a proposição do autor. Feito Deus e seu filho colocado à Terra para chamar a atenção sobre a injustiça e a hipocrisia prevalecente.
A única diferença é que "Habacuc" não é Deus. É um homem, e pode ter de responder hoje a quase duas milhões de pessoas que estão assinando uma petição on line, exigindo que ele seja barrado em suas próximas tentativas de realizar a performance.
Fu Lana lembra uma atuação de arte que envolvia um homem e um lobo selvagem. Naquela exposição, em que os dois foram confinados em uma sala de uma galeria de Nova Iorque, o autor provava que o homem poderia conviver pacificamente com um animal selvagem. A idéia era exatamente oposta de Guilherme. Joseph Bueys queria provar que a humanidade tinha uma solução pelo pacífico, pela solidariedade e pela comunicação entre desiguais.
Guilhermo, na pós-modernidade, quis provar que o homem já virou pedra, e ainda não sabe. Quer provar que a hipocrisia tomou conta total, que um cão sarnento em uma galeria não seria o mesmo do que um cão na rua. Poderia gerar uma onda de horrores. Conseguiu.
Caos na fita
Quem tenta lembrar dos sonhos? Impossível encontrar uma linha de condução das várias histórias em uma só noite. A gente procura organizar o sonho para contar ao psicólogo para ver se ele entende melhor e nos explica alguma coisa. As cores mudam, tanto de tom quanto para preto e branco, as imagens tremem, as frases ficam inconclusas e ecoam em cenas diferentes. Uma gritaria, lá pelas tantas, e alguma tragédia podem ocorrer rapidamente, como se estivéssemos dopados, em um manicômio. Estressados, então, temos sobressaltos e tudo nos assusta. Colocar isso em imagens no cinema? Difícil, mas certamente experimental.
Fu Lana queria assistir a "Beijo Roubado". Porém, para evitar o congestionamento das estradas, a população da pequena capital gaúcha resolveu economizar em gasolina e estresse, e lotou os cinemas para ver "Indiana Jones" e, em segunda opção, o filme-alvo de nossa boba heroína.
Disparado em terceiro lugar estava "Sonho dentro de um sonho", com direção, trilha e atuação de Anthony Hopkins. Uma viagem a la David Lynch, com direito a alguma noção do enredo só ao final da fita.
Um casal de velhinhos no cinema deu pena. Em menos de 30 minutos, decidiram não perder o tempo que lhes resta de vida para acompanhar o derradeiro devaneio de um sujeito talentoso. Várias pessoas saíram do cinema durante a sessão. Por impaciência apenas, pois a experiência é válida. Há muitas pegadinhas para cinéfilos. Vale prestar atenção, se conseguir, em detalhes como fotos nas paredes, imagens sobrepostas e diálogos muito sutis sobre o mundo do cinema. Conseguimos dar boas risadas.
Para uns, o filme é péssimo, do tipo: ninguém merece. Para outros, uma obra rara e corajosa. Como sempre, o melhor é o que nunca nos deixa indiferentes. Teste sua capacidade de viver no caos. Afinal, ele se apodera, cada dia mais, de nós.