Assombramentos

Por José Antônio Moraes de Oliveira

"Quero buscar quem fui onde ficou".

Fernando Pessoa.

Naquele tempo, a vida era mais leve e bem menos complicada. Nossos pais eram jovens e alimentavam sonhos para o futuro. Perdas e tristezas eram esquecidas logo que ava o luto fechado de 30 dias e as roupas negras iam para o fundo dos armários. Doenças terminais? Tão poucas que se podia contar nos dedos. E os velhos desapareciam discretamente e viravam retratos nas paredes.

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Recordo de uma grande parede branca da sala-de-frente na fazenda do o Grande. Era coberta de cima a baixo com retratos dos mortos da família. Eu interrogava aqueles rostos silenciosos, imaginando os segredos que teriam por contar.

Como os retratos não tinham nomes, eu apelava para uma das tias para saber dos segredos das figuras na parede. Minha escolhida era sempre a Tia Vieira, magra, ágil como um coelho e sempre de bom humor. Diante dos rostos fúnebres e sombrios, ficava em silêncio por um longo minuto, como viajando para um lugar distante. Mas logo abria o sorriso, apontava para os retratos e ia recitando nomes e sobrenomes. Lembrava de tudo - de avôs e bisavós, suas façanhas e de como haviam batido as botas.

Apontou para uma figura de longas costeletas grisalhas que nos fitava imível de sua moldura dourada. Teve um fim trágico - abatido a tiros de escopeta por um desafeto injuriado; outro, homem pálido e de bigodes à kaiser, foi picado por uma jararaca, mas galopou por horas para morrer na cama. E tantos outros que morreram jovens, vítimas de febres terçãs. Era um tempo em que não se chamava doenças pelo nome e sim por apelido: infarto se dizia ataque do coração, tuberculose, mal do pulmão e infecção, sangue ruim. 

Mas a Tia Vieira não tinha papas na língua - contava tudo, dos mal-feitos e bem-feitos de avós e avôs. Como o caso de um tal Capitão Breno, useiro e vezeiro em pular a cerca. E de uma certa tia-avó que enfrentava os ladrões de gado com uma garrucha em cada mão. 

Eu, mudo e encantado, sem saber se o que ouvia era inventado ou verdade. Mas não deu para saber, pois a Tia Vieira logo dava  a conversa por encerrada. E com um olhar maroto que escondeu sua tristeza me convidou para ir para a cozinha, onde uma fornada de rapadurinhas de amendoim estava saindo do fogão. Era seu jeito de apagar assombramentos e me trazer de volta para a alegria de estar vivo.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem agens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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