Quase sempre escrevo a crônica para Coletiva até terça ou quarta-feira. Semana ada, outros afazeres me liberaram apenas na sexta-feira.
Fraternidade de luto, sentei-me para escrever sobre Fernando Torres, que se fora na véspera.
São Paulo, 28 de outubro de 1954. Em meio às comemorações do quarto centenário da cidade, o empresário Sandro Polloni e a mulher, a já consagrada atriz Maria Della Costa, inauguram uma sala de 420 lugares, um teatro em todos os seus detalhes.
Gianni Ratto, jovem cenógrafo italiano, já com destacada carreira na Itália, é convidado para a direção do espetáculo inaugural. O texto escolhido é O Canto da Cotovia, de Jean Anouilh, uma versão sobre Joana D"Arc, que Ratto dirige e assina a cenografia.
Num grande elenco, além de Maria Della Costa, que dá nome ao teatro e interpreta Joana, estavam Sérgio Britto, Eugênio Kusnet, Milton Moraes, Rosamaria Murtinho, Wanda Kosmo, Eny Autran (irmã de Paulo Autran), meus amigos Serafim Gonzáles, Manoel Carlos e Fábio Sabag, entre outros. Nesse "entre outros", Fernanda Montenegro e Fernando Torres.
Aí a crônica engasgou, pois num debate público sobre o espetáculo, no próprio teatro, meu amigo-irmão Flávio Rangel e eu começamos, pelas mãos do Maneco e do Sabag, a conhecer e conviver com parte daquele elenco, ou seja, com os Fernando(s) também.
Crônica engasgada, resolvi deixar que milhares de lembranças cumprissem suas nostalgias e retornei à crônica só lá pelas nove da noite.
Mal recomeçara, e Rachel, minha filha, muito triste, sabendo da amizade, me telefona do Jornal do Brasil e me avisa que está trabalhando no obituário de Fausto Wolff.
Abandonei a crônica, remoí outras recordações e - desorientado - deixei o sábado ar sem vir ao computador.
São 18 horas de domingo e este velho colunista que, antes de ser jornalista, publicitário e escritor era um homem de teatro full time, não esqueceu a velha tradição: the show goes on.
O papel de Joana D"Arc exigia da Maria Della Costa um grande esforço vocal, e a acolhida do público fez com que 1955 começasse com o espetáculo prolongando-se em cartaz. O sucesso foi dramático para as cordas vocais da Maria Della Costa: cirurgia.
Assim como avião no hangar é prejuízo, teatro sem peça em cartaz é fúnebre.
Gianni Ratto, sem a Maria, dirigiu a peça de um desconhecido, e A Moratória revelou o grande autor Jorge de Andrade e a grande atriz Fernanda Montenegro. Elísio de Albuquerque, Milton Moraes, Sergio Britto, Wanda Kosmo e Monah Delacy (mãe de Cristiane Torloni) completavam um elenco muito homogêneo. Já ados 53 anos, considero esse espetáculo o melhor de texto brasileiro entre todos a que assisti até hoje.
Acho que quem, como eu, sabe ser a amizade a grande dádiva de sua existência, concorda que a crônica só podia engasgar mesmo ao remexer com tantos tempos, tantos momentos e tantos nomes.
Vou tentar dar um toque menos triste a um texto gerado pela tristeza.
Nosso último encontro com o casal foi puro acaso junto à pura coincidência.
Paulo José, Peréio e eu saímos do Rio e fomos, em 2004, para Porto Alegre, onde nos juntamos com Milton Mattos e outros companheiros do Teatro de Equipe (1958/1962) e recebemos na Câmara Municipal o prêmio de teatro Qorpo Santo, homenagem ao nosso trabalho naquela época. Terminada a solenidade, já noite, a presidente da Câmara, Margarete Moraes, mais entourages dela e nossa fomos ao Restaurante Copacabana onde, pouco depois, chegaram os Fernando(s).
Ela estava dando um curso naquela cidade e ele a acompanhava. Depois de duas lembranças alegres, ela me acusando de uma infidelidade a qual indiretamente testemunhara e a uma noite em Nova Petrópolis, lembrança definitiva, nos despedimos. Vamos aos fatos que dão notícia do primogênito Cláudio Torres.
Numa sexta-feira de 1962, em Porto Alegre, durante a temporada no Theatro São Pedro de Um Beijo no Asfalto, que Nelson Rodrigues escrevera a pedido de Fernanda para o Teatro dos Sete e que dera ao marido, no Rio, no ano anterior, o prêmio de melhor diretor pela encenação da peça, Fernando me procura e consulta: "Mario, depois do espetáculo de domingo à noite, nosso compromisso é estar no São Pedro às 19 horas de terça-feira. O que você sugere para a gente fazer?".
Aprovada a minha sugestão, segunda cedo uma Kombi dirigia-se para a Serra com o casal, mais Maria Esmeralda, Labanca, Claudio Corrêa e Castro e eu. Paramos em Nova Petrópolis, na pousada da Dona Hertha onde eu já curara algumas estafas, acertamos o jantar e o pouso daquela noite, mais café da manhã e almoço na terça. Seguimos viagem e durante o dia, além de Gramado onde almoçamos, estivemos em Canela e Itaimbezinho, um dos grandes cânions brasileiros.
Cumprimos a jornada e, depois de algumas semanas, o Teatro dos Sete foi apresentar-se em Curitiba, onde acabei recebendo um Western (o telegrama que chegava) do casal: "Estamos grávidos. Viva a Dona Hertha!"
Há tempos que eles queriam, mas a gravidez não acontecia. Dona Hertha ou a ser uma referência alegre nos nossos reencontros.
Inté Fernando, inté Fausto.