As folhinhas do tempo
Não sei se foi a dupla virada de tempo ? calor infernal, no meio do inverno seguido de um frio absurdo, sem espaço pra …
Não sei se foi a dupla virada de tempo - calor infernal, no meio do inverno seguido de um frio absurdo, sem espaço pra adaptação - ou se é a constatação de que estamos virando a folhinha, rumo a setembro, que me deu uma esvaziada e não consigo pensar em nada mais essencial para escrever.
Tanto isso é verdade que fico tentada a escrever sobre a folhinha, esta peça que hoje chamamos calendário e que, na minha infância pobre da vila do IAPI, era objeto de desejo.
A pendurávamos sempre na parede da cozinha que, então, não tinha essa história de azulejos, era pintada numa técnica que mistura tinta à massa corrida, formando desenhos estranhos nas paredes. Acho que era em tons de marron avermelhado, já não lembro. Só sei que a folhinha tão esperada tinha, sempre, seis páginas, e sempre com lindas e paradisíacas paisagens que nada tinham a ver com nossa realidade: ou eram cerejeiras em flor, em torno de pagodes, ou picos nevados tendo, em primeiro plano, lagos que refletiam as nuvens brancas do céu, ou então eram campos verdes, imensos, recobertos por pequenas flores amarelas. Quando se tinha sorte, uma das folhas exibia uma praia tropical, cheia de palmeiras.
Nunca havia uma figura humana nestas paisagens. E isso me impressionava.
Eu ficava ali, na mesa da cozinha, minha mãe fazendo almoço ou janta, o rádio de baquelite marron ligado ou na música da Guaíba, aquelas orquestras poderosas, minha mãe assobiando, ou então ouvindo noticiários, comentários, novelas, humorísticos, os reclames musicais e engraçados.
De quando em quando, levantava os olhos das contas de somar e multiplicar, da conjugação dos verbos, das questões de história do Brasil para espiar a folhinha. E alguma coisa me asserenava, como se me dissesse que o tempo ava, sim, mas que, com um empurrão divino, eu poderia até desfrutar, ao vivo, daquelas paisagens.
Hoje o calendário é um recurso pobre de divulgação publicitária. Tenho um, de um vizinho que trabalha com loja de tintas. Nem se preocuparam em colocar uma mísera foto de uma margarida, que fosse. É a propaganda no papel acartonado e, grampeadas nele, as 12 folhas com os meses. Só isso.
A inclemência do tempo sem o benefício das cores e da imaginação que nos proporcionavam as velhas folhinhas.
Agora entendo por que minha mãe insiste em manter uma delas, de mais de quatro anos trás, espetada num prego no quarto de televisão. Tem umas árvores maravilhosas, sem folhas, pura flor, de um rosa quase lilás. Cada vez que entro lá em casa, diviso a imagem.
Minha mãe fez 80 anos em maio, meu pai os completa agora, dia 2 de setembro, eu caminho para os 56, um mês depois dele. Tudo se conta mais rápido, por esses dias: o tempo de trabalho, que já bate nos 36 anos, a idade dos filhos, todos com mais de 20, as amizades antigas, bênçãos que nem nos damos conta do quão fantásticas são. E tem as velhas músicas que não saem da cabeça, aquelas que a gente ainda conseguia decorar, facilmente, diferente de hoje, quando são menos elaboradas mas difíceis de memorizar. E tem os cheiros que voltam, como o do caramanchão de guaco que ficava à porta dos fundos do apartamento, atraindo abelhas e inundando o entorno com aquele cheiro doce. Penso em tudo isso e a sexta-feira se vai. E eu fugindo dos temas do jornalismo, por puro fastio e cansaço.