As cinzas do ano que começa

Carnaval, desengano, deixei a dor em casa me esperando, e brinquei e gritei e fui vestido de rei, mas na quarta-feira sempre desce o …


Carnaval, desengano, deixei a dor em casa me esperando, e brinquei e gritei e fui vestido de rei, mas na quarta-feira sempre desce o pano. Se o adágio antigo de que o Brasil começa a funcionar só depois do carnaval, é chegada a hora. Todos guardem suas fantasias para lembrar dos carnavais ados, desarrumem as malas chegadas da praia para encher a máquina de lavar roupa, coloquem ordem no material escolar dos filhos que as escolas se preparam para o início do ano letivo, paguem seus impostos para cobrar as melhorias depois, façam a lista de suas prioridades e corram que a fila tem que andar.


É claro que o País, o Estado, o Município não vão se desenvolver só com as nossas atitudes pós folias momescas. Mas também não custa a gente apostar que a roda da vida nacional, estadual e municipal vai começar a girar. Não tem mais desculpa para o presidente Lula não anunciar seu ministério. Chegou quarta-feira de cinzas. Não tem mais explicação para a atual governadora do RS continuar reclamando que pegou um Estado deficitário e que pouco pode fazer, como se não soubesse disso antes. Chegou quarta-feira de cinzas. E nem o prefeito de Porto Alegre tem razão para não implementar as obras sociais que a cidade pede.


A liturgia atual católica da quarta-feira de cinzas, que é uma preparação para o começo da quaresma, tempo de examinar nossas ações atuais e adas e lamentar pelos nossos pecados, pode ser perfeitamente aplicada às ações de todos a partir de agora. Ao dar a largada, finalmente (ufa), no ano de 2007, vamos deixar de lado a cara feia, o sorriso forçado, o desaforo com o vizinho, o pouco tempo com a família, a violência cotidiana. Vamos inaugurar um novo tempo. Quem sabe trazendo alguns ensinamentos do carnaval, onde gente triste pode entrar na dança e gente grande soube ser criança.


Jogar fora as cinzas da desgraça que arrastou o menino José Hélio, de seis anos, no Rio de Janeiro, esquecer que prosseguem as mortes no Oriente Médio, que apesar do fim do carnaval, os parlamentares continuam de folga e poucos compareceram à Câmara, na quarta-feira, em Brasília, que muitos acordaram, após os quatro dias de folia, sem ter o alimento para fortalecer suas famílias. Queimar as lembranças dos meninos sem-teto, sem-comida, sem roupa, sem educação, sem saúde, sem infância, que mesmo durante o carnaval, arriscavam-se nas esquinas pedindo mais do que esmola, um pouco de atenção.


Porque não fechar o carnaval com muito confete e purpurina para a informação de que o beijo na boca pode gastar até 14 calorias (vamos beijar, gente); ou que a Rússia recupera sua auto-estima e busca seu lugar no mundo (economia recuperada); que o Rio de Janeiro, apesar da guerra diária do tráfico nas favelas que ceifa a vida de inocentes, vai ser sede dos jogos Pan-Americanos esse ano; ou que no Estado de São Paulo, ocorreu uma queda de 29% no número de homicídios no período deste carnaval, em relação a 2006. Se depender da nossa vontade, o ano começou mesmo e quem brincou de princesa no carnaval não se acostumou com a fantasia.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve agens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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