As águas de março
No meu reencontro com Porto Alegre, cidade que amo demais, e com o trabalho no Correio do Povo, depois de uma licença de saúde …
No meu reencontro com Porto Alegre, cidade que amo demais, e com o trabalho no Correio do Povo, depois de uma licença de saúde para um descanso do "Tico & Teco" (meus dois neurônios), fui brindada com um plantão chuvoso no domingo. O local da pauta era o Moinho do Parcão, que mesmo com os pingos de chuva ainda recebia alguns atletas insistentes. Ao pisar na terra do parque e sentir aquele chão molhado, imediatamente lembrei da música do Tom Maravilhoso Jobim e cantei bem baixinho "Águas de Março", num volume silencioso, para não espantar o motorista e o fotógrafo que me acompanhavam.
Sim, as águas de março estavam fechando o verão, com promessa de vida no meu coração. A luz da manhã, o tijolo chegando, um o, uma ponte, um resto de mato, no rosto o desgosto, é um pouco sozinho. A letra, uma das mais lindas e bem construídas da Música Popular Brasileira, não me saiu mais da cabeça e fiquei pensando que, realmente, março encerra um ciclo importante na vida das pessoas. Pode ser sinal de um belo horizonte ou uma febre terçã. Jamais o fundo do poço ou o fim do caminho.
O mês de março sela o primeiro trimestre, tempo suficiente para revisar o planejamento familiar, sentimental, profissional e econômico do ano, se os primeiros sinais indicarem que as metas foram superdimensionadas. Com o vento ventando, talvez as pessoas encontrem mais tempo para se olhar nos olhos, se permitir, se tocar, se afagar, se conhecer. Hora apropriada para mandar embora as desculpas esfarrapadas que sempre servem para adiar os compromissos, as reuniões, os encontros, os namoros, os estudos, as conversas. É o fim da canseira.
Os dias começam a ficar mais frios e as árvores majestosas balançam seus braços sobre as ruas. É o outono que chega trazendo toda a sua beleza européia e um entardecer nebuloso. As folhas se despem, caindo sorrateiras das árvores, como se estivessem à espera, também, das grandes novidades que as flores de abril prometem trazer. É tempo de comer pipoca, bolinho de chuva, cueca virada, tomar o chá das 17h, pegar um DVD radical para assistir, arrumar e comprar aquele CD que você namora há tempo e curtir o escurinho do cinema.
Recomeço, revisão, resgate e reencontro são palavras que combinam com o final de março. Tudo porque quando o terceiro mês se encerrar, abril se apresenta com suas possibilidades de acerto. Afinal, ainda restam nove meses para a corrida dos 365 dias. Tempo suficiente para planejar o que fazer com a filha nas férias de inverno, emagrecer aqueles quilos adquiridos no verão, sair em busca de grana extra engordando os frees, programar um jeito de ver algum jogo da Seleção na Copa da Alemanha, voltar a ear no Brique, torcer pelo Grêmio. Nossa, a lista não termina mais.
No resto do domingo, o barulho insistente da chuva me trouxe lembranças de um tempo curto de muita felicidade na rua Tomás Flores, local em que a família de minha tia e minha avó reunia-se em volta de uma imensa mesa redonda para jogar pontinho. Pois, quando cheguei em casa, na volta do plantão, minha mãe, como que adivinhando que eu estava inundada pelas águas de março, avisa que comprara um baralho novo e alguns quitutes. As quatro mulheres da família (minha mãe, eu, minha irmã e minha afilhada) - Gabriela estava com o pai - reuniram-se para jogar canastra e conversa fora.
Afogada pelas águas de março, uma ave no céu, uma ave no chão, e contendo as emoções para não explodir pela semelhança do cenário, decretei que sempre se pode tentar um novo fim. Ficou piegas? Execute aquela pauta que você sempre pega de um modo diferente, vista sob um outro ângulo. Ouça finalmente o conselho daquela sua amiga e retome os contatos perdidos nas páginas do calendário. Experimente ir ao cinema assistir a um estilo de filme diferente. Não tenha medo de parecer sentimental demais (tem uma música brega assim, ok?) e abrace aqueles que lhe rodeiam. E, finalmente, não adie jamais uma alegria e uma declaração de amor.