Apesar… é outono…

"Onde não há jardim, as flores nascem de um secreto investimento em formas improváveis".(Carlos Drummond de Andrade) O brasileiro virou um ilhéu cercado de …

"Onde não há jardim, as flores nascem de um secreto investimento em formas improváveis".(Carlos Drummond de Andrade)


O brasileiro virou um ilhéu cercado de escândalo e corrupção por todos os lados.


O show na Comissão de Ética durou mais de sete horas e eu, quando ia ao circo, na infância, não dispensava minha cota de amendoins e tremoços. Agora, uma dieta permanente não permitiria um mínimo daquela cota para assistir à última palhaçada parlamentar.


Apenas cinco minutos da TV ligada no show deram-me certeza que a jornada, só de "nobre" e "excelência", consumiria uns 30 minutos. Fui trabalhar com a satisfação de quem sabia estar fugindo de um suplício, eu que sou cada vez mais um fanático da objetividade.


Como não sou alienado, lá pelas 23 horas vim ao computador, ei a Zero Hora e, em menos de 10 minutos, fiquei sabendo de tudo o que aconteceu e não  aconteceu naquela casa de Brasília.


Há muito que me desinteressei pela política brasileira no varejo, mas é impossível conseguir alguma vacina que imunize ouvidos e sentimentos em relação à corrupção, ao escândalo e à palhaçada. Esses vírus que se multiplicam pelos ares pátrios não contam nem com o analgésico dos japoneses que aplaudem toda vez que um corrupto, ao ser descoberto, pratica harakiri. Essa alegria, uma possível felicidade quase geral da nação, nos foi negada e eu, para minha infelicidade individual, já encontrei um ex-ditador na fila do pão e outro num elevador. Esses, pelo menos, já tiveram suas mortes devidamente comemoradas.


Lembrei-me, agora, porque o harakiri não pegou no Brasil. É um ato de quem perdeu a honra e só é possível perder o que se tem.


Na ausência da vacina, resolvo ficar mais atento ao cotidiano, degustando com muito prazer o simples fato de viver. É outono, ainda, e no Rio, há mais de duas semanas, o outono se leva a sério, respeita o calendário e, além de frutos, nos oferece flores imprevistas. Não faz frio, não faz calor e tenho impressão que o clima quer que eu agradeça esse acúmulo de gentilezas, coisa que essa crônica é parte pequena, pois mulher, filhas, amigas e amigos devem estar meio preocupados com o fato de eu estar tão desligado desse cenário nacional e, ao mesmo tempo, estar absolutamente em paz com esse complexo enigma de existir.


Estou fora da paisagem comum, eu sei, mas é que essa outra paisagem, a outonal, me cativou de tal forma que outro dia, ao descer do elevador, fui conferir se minha braguilha não estava aberta, face ao olhar de uma vizinha como se eu tivesse soltado uma gargalhada num velório.


Devo transitar com uma aura em torno da cabeça, pois o espanto dela deve ser por causa da minha alegria de viver. Esse estado de espírito é tão grande que me sinto na obrigação ética de lembrar os amigos - e agora os leitores - que, apesar de tudo, é possível ser feliz.


Não vai aí nenhum conselho ou auto-ajuda, cada um faça de sua vida o que quiser, inclusive harakiri.


Eu só quero dizer que sou e estou muito feliz.


Inté.

Autor
Mario de Almeida é jornalista, publicitário e escritor.

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