Apenas um adeus

Sua memória foi pisando muito de leve no ado. O temor de reviver momentos indesejáveis exigia muito cuidado para não mexer com qualquer coisa …

Sua memória foi pisando muito de leve no ado.


O temor de reviver momentos indesejáveis exigia muito cuidado para não mexer com qualquer coisa que levara tempo para ser esquecida.  


Mesmo a certeza que uma ou outra grande ferida há muito era apenas cicatriz, recusava-se a reviver qualquer evidência do que fora dor. Lembrou-se de Shakespeare: "Ri-se da cicatriz quem nunca foi ferido".


O que é pensado não foi esquecido, o que muda é a forma de pensar sobre o que está sendo lembrado. O esquecido mesmo, ou encontrou o cérebro já lotado naquele tema ou apenas gastou-se no tempo, assim como a morte natural dá lugar a novas vidas.


Carecia ir ao encontro do ado, precisava entender certas perdas e, mesmo correndo riscos, precisava desvendar alguns segredos dele para ele mesmo.


Há coisas que aconteceram num ado remoto e sobre as quais, no seu exato momento e nem nunca mais, foram pensadas, analisadas, avaliadas. Aconteceram como acontece uma pedra rolar de um morro qualquer, mas uma pedra não rola por si mesma. Há todo um ado escondido numa pedra que rola.


Há acontecimentos não-acidentais - acontecimentos comandados -, conseqüências de uma ou mais vontades que não aconteceram, foram acontecidos.


Com muito cuidado - não queria se machucar -, abriu uma fresta na memória e visualizou uma parte da entrada de um aeroporto no Sul. Muitas vezes, bem depois daquela vez, embarcara e desembarcara naquele aeroporto. Mas aquela era a primeira em que embarcara lá.  Respirou fundo enquanto deixava que a memória acontecesse. Tinha certeza que agora não havia como evitar, já estava acontecendo?


Um abraço, um beijo, o lacre de um adeus.


Milhares de abraços e beijos já haviam sido trocados em meio a uma paixão recíproca e tórrida. Nunca houvera antes um amor naquela temperatura de paixão. Como poderiam um abraço e um beijo selar - num adeus - a certeza do nunca mais? Qual o motivo ou quais os motivos?


Lembrou-se da chamada do seu vôo. Lembrou-se da escada do avião e da tentativa de voltar-se para um aceno. Não conseguira.


Lembrou-se também que quando o avião desprendeu-se do solo, ele ficou aprisionado num vazio infindo, um vácuo que o viver só conseguira incorporar como doença incurável? ou a amputação de algo tão essencial quão intangível.


Então, aconteceu a revelação do que nunca supa. Aquele adeus era apenas um dos mistérios da condição humana.


Inté ano que vem.


Aos familiares, amigos e leitores peço que acolham os votos do que desejo para mim mesmo:


Que nos deixem em paz.


Se 2009 for bom, será ótimo.

Autor
Mario de Almeida é jornalista, publicitário e escritor.

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