Ao vencedor, as pizzas
Há muito tempo, Lula liderava um movimento grevista de metalúrgicos em São Bernardo do Campo, o país sofria nas mãos de uma ditadura brutal, …
Há muito tempo, Lula liderava um movimento grevista de metalúrgicos em São Bernardo do Campo, o país sofria nas mãos de uma ditadura brutal, e a TV Globo pagava seu dízimo à força instalada, colocando no ar um operário que se dizia satisfeito da vida. E ele tinha razões concretas.
Esse operário, imigrante de um dos bolsões de miséria absoluta do Nordeste, poderia ter sido um dos modelos para Portinari na série "Retirantes", personagem de Vidas Secas, de Graciliano, ou o próprio "Severino", de João Cabral, em Vida e Morte Severina.
Para mim, era um sobrevivente cujo discurso de auto-satisfação finalizava com a alegria de sair com a família, aos domingos, para comer uma pizza.
Aquela entrevista marcou-me para sempre, pois naqueles dias negros em que alguns dos meus familiares e amigos torturados festejavam o exílio ou a soltura, um trabalhador brasileiro festejava a possibilidade semanal de saborear uma pizza.
Pensei no paradoxo daquele serviço que a Globo prestava às forças reacionárias, colocando no ar um fugitivo da fome.
Veio-me à memória o imenso contingente de brasileiros bem-alimentados, que forneceu a senha para o golpe contra o governo Goulart, na Marcha com Deus pela Liberdade.
A direita, em 1964, havia usado a classe média como massa de manobra para os seus apetites sempre derrotados nas urnas desde 1945 (ganhou com Jânio, mas esse renunciou).
Um operário brasileiro recusava-se a entrar em greve, pois comemorava o fato de haver escapado de onde nascera e das suas tragédias. O migrante conseguira subir ao pódio para receber sua medalha: uma pizza.
Aquela entrevista, na minha ótica, bastava para desmoralizar os ladrões do poder e desmoralizar, ainda mais, quem os apoiara.
Sentado diante da TV, ganhei a consciência definitiva de que já era tarde para eu fugir desta tragédia chamada Brasil. Só me restara o consolo de estar colaborando com os que estavam na luta contra os fantoches fardados e manipulados pelos grandes interesses econômicos.
Era pouco, mas o aeroporto oferecia o privilégio de se tomar um banho de civilização e, até, complementar na Notre Dame de Paris o conhecimento sobre a nossa realidade. Marquei presença, lá, numa exposição sobre as atrocidades que eram cometidas aqui em nome de Deus e da liberdade.
Tempos depois, quando a roubalheira já estava escancarada, nasceu a frase-síntese da crença nacional na impunidade: "Vai acabar em pizza".
Como não dou muita importância ao caviar, quando ganhei status para comemorar ganhos lícitos, preferia uma entrada de pâté de foie gras ou pasta de salmão, mas acompanhada de um Dom Pérignon brut.
Eu não conseguia entender como a corrupção impune podia optar por uma comemoração com um prato tão prosaico como a pizza, inda que sem deméritos gastronômicos. Sendo prosaico e barato, parecia-me comanda de avarento desconhecedor de delícias sutis.
Fui à luta e cheguei à "metonímia", ou seja, o uso de um vocábulo concreto no lugar de um outro abstrato. No caso, por ser a pizza um prato de agrado da maioria, ela substitui o vocábulo abstrato "comemoração", ou seja, o verdadeiro sentido da frase é "vai acabar em comemoração".
Caríssimo leitor (quem tem família tem cúmplices): se achar que essa crônica saiu do computador de alguém deprimido, ledo engano.
O país é uma merda, mas a vida é bela.
Salta uma pizza!
Inté.
