Ano novo com defeito de fábrica
Quem disse que 2009 seria diferente já deve ter emigrado para o Polo (sem acento mesmo) Norte e sabe-se lá quando retorna. Se é …
Quem disse que 2009 seria diferente já deve ter emigrado para o Polo (sem acento mesmo) Norte e sabe-se lá quando retorna. Se é que a criatura terá coragem para tanto. Se tiver um pouco de amor à pele, some de vez. Nem vale a pena recorrer aos órgãos de defesa do consumidor e alegar propaganda enganosa, uma vez que ninguém comprou o ano novo. Perda de tempo. Sem nota fiscal, tudo registrado, com a etiqueta, as lojas não aceitam de volta a mercadoria. E pense comigo. Vai dizer o quê? Que chegou faltando peça? Que começou no início? Que só anda prá frente?
Melhor esquecer e deixar os dias seguirem. Logo, numa fração quase imperceptível de segundos, eu e todos que sobreviverem, estaremos comprando as roupas do oxalá regente e preparando a lentilha para receber o 2010. Pior! Apesar da experiência acumulada, periga de alguém acreditar que o novo ano poderá ser diferente. Nem Freud explicaria esta necessidade estúpida que o ser humano tem de continuar acreditando no improvável. E assim, dizem, recontam estórias e a vida continua. No novo ciclo que se iniciou no dia 1º deste mês, só a nossa esperança parece ter sofrido alguma alteração.
Prepare-se, pois, leitor-nauta. Sabe aquela esquina privilegiada, onde duas ruas famosas do bairro Bom fim se enamoram e os moradores oficiais das adjacências pagam alto valor de IPTU pela sua excelente localização? Embaixo das marquises apodrecidas dos edifícios do cruzamento proliferam famílias que, isentas do imposto, é claro, construíram seus lares. Geralmente, o mantenedor da família é um homem cansado, desanimado, desgastado e que aparenta a idade bem superior à real. E ao seu redor, espremidos nos espaços concedidos pelos pedestres, uma penca de filhos menores, todos excluídos da vida.
Longe de ser pessimista, mas essa família e milhares e milhares de outras semelhantes habitam a Porto cada dia menos Alegre há muito tempo. E não seria diferente em 2009. Talvez o nosso olhar pudesse mudar essa realidade. Se ao invés de armos correndo, quase atropelando o vizinho da esquina com o ritmo enlouquecido de quem não tem tempo para o tempo de parar e pensar, os dias dos próximos meses pudessem ser recontados. E um novo capítulo surgiria com a alegria do pai da família ao ganhar, vez em quando, roupas para os filhos, comida para todos e um agasalho quando o frio chegasse.
Um gesto simples não mudará definitivamente a vida de todos que não nasceram em berço esplêndido ou tiveram condições de estudar, batalhar e trabalhar para não morar no mesmo teto que essas famílias. Mas pode incentivar outras pessoas. E mais outras. Quem sabe formarmos um ciclo, em que cada um dá apenas o que pode, sem se violentar! Até chegar o dia em que as famílias das esquinas não precisarão mais mandar que seus filhos, em vez de frequentarem a escola, permaneçam nas sinaleiras, aguardando a chance de pedir uma ajudinha para o motorista de tal possante veículo.
E, num futuro subjetivo, distante e quase improvável, quem sabe a virada do ano possa ser mais que um estourar falso de champanhe, promessas de amor eterno, metas impossíveis e válvula de escape para a resolução imediata de todos os nossos enormes problemas (até a briga torpe com o vizinho). Muda calendário, troca-se o mês, am-se os anos, mas a nossa hipocrisia, retratada no ato sujo de lavar as mãos, fica cada vez mais atuante. Não é a chegada de um novo ano que irá enterrar, definitivamente, todas as nossas pequenas maldades, e nem ressuscitar a igualdade de direitos para todos.
Como lembra a tradução da música "Minha Vida", feita por Rita Lee para a composição de John Lennon e Paul Mc Cartney, "tem lugares que me lembram minha vida, por onde andei, as histórias, os caminhos, o destino que eu mudei?". A esquina disputada para uma morada rude, no Bonfim, é cena do meu filme em branco e preto, que o vento levou, e 2009 trouxe de novo para a minha realidade.